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Jamil Chade

Saída da OMS isolará Brasil; acesso à vacina e tratamento será prejudicado

                             -                                 EVARISTO SA/AFP
Imagem: EVARISTO SA/AFP

Colunista do UOL

06/06/2020 10h46

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A ameaça do presidente Jair Bolsonaro de deixar a OMS foi recebida na diplomacia internacional como uma tentativa deliberada do governo brasileiro de desviar a atenção e se eximir da responsabilidade pelas mortes no país por conta da covid-19.

Na noite de sexta-feira, o presidente alertou que se a OMS não mudasse seu comportamento considerado como "ideológico" pelo Palácio, ele poderia seguir o mesmo caminho de Donald Trump e romper com a agência.

Oficialmente, a OMS indicou neste sábado que não irá reagir ao anúncio do presidente brasileiro. Mas não faltaram comentários no alto escalão da diplomacia de críticas e apontando como uma manobra para encontrar um culpado externo pela crise, exatamente a mesma tática usada pela Casa Branca quando os EUA registraram 100 mil mortes. Naquele dia, Donald Trump anunciou que estava "rompendo" com a agência de Saúde.

A OMS, sob duros ataques, admite que vai iniciar um processo de revisão de seu trabalho. Entre europeus e diversos governos latino-americanos, a percepção é de que uma mudança no sistema precisa ocorrer. Mas há um entendimento quase unânime de que que tal reforma ocorrerá depois de a batalha contra o vírus ter terminado. Caso contrário, o risco é de que o foco na pandemia perca força.

Para negociadores internacionais, escolher a OMS como foco de ataques é buscar uma "cortina de fumaça". Mas embaixadores e técnicos apontam que a realidade é que Bolsonaro ignorou os alertas da entidade.

No dia 30 de janeiro, a OMS declarou a emergência global, o máximo nível dentro das regras internacionais. Mais de um mês depois, em 9 de março, o presidente brasileiro insistiu que a questão estava "superdimensionada".

Dois dias depois, a OMS declarou a pandemia global. Mas, naquele mesmo momento, Bolsonaro indicou outras gripes mataram mais que a covid-19. Uma semana depois, Bolsonaro chamou de "histeria" o assunto.

Quase depois meses depois do alerta de emergência da OMS, em 24 de março, o presidente brasileiro insistiu em termos como "gripezinha" e "resfriadinho". No dia 12 de abril, ele ainda indicou que o vírus estava "indo embora".

Hoje, o Brasil supera os EUA na contagem de novos casos nas últimas duas semanas. Nos últimos sete dias, o Brasil também supera os americanos em mortes neste período. Dentro da OMS, a constatação é de que o país se consolida como o novo epicentro da crise internacional.

Abismo

Em Genebra, os comentários diante da declaração de Bolsonaro variam entre constatar o "papel ridículo" que o país assume ao repetir a mesma estratégia de Donald Trump e análises que apontam que tal gesto apenas ampliaria o isolamento internacional do país.

Fora da agência, o Brasil poderia estar excluído de um esforço internacional liderado pela OMS e europeus para garantir a produção e acesso à vacina contra a covid-19.

O governo brasileiro hesitou em fazer parte do esforço e sequer havia sido convidado para o lançamento do projeto. Mas, na semana passada, uma reunião ministerial em Brasília decidiu dar o sinal verde para que o governo solicitasse a adesão ao mecanismo.

De fato, se o Brasil imita a tática de Trump, negociadores alertam que o impacto de uma eventual saída do país da entidade não seria a mesma.

O governo americano é responsável por US$ 400 milhões de um orçamento de US$ 2 bilhões da OMS. No fundo, portanto, os americanos em parte sustentam a resposta global a diversas crises sanitárias.

O Brasil, ao contrário, é um dos beneficiários do sistema e hoje mantém uma das maiores dívidas com a entidade, de US$ 33 milhões. "O Brasil perde mais que ganha saindo da OMS", apontou um experiente negociador.

Hoje, é do braço da OMS nas Américas, a Organização Panamericana de Saúde, que o Brasil compra milhares de testes para a covid-19. A negociação estipulava o envio de 10 milhões de testes ao país. Uma parte inclusive ja foi entregue. Fora da entidade, o Brasil também ficaria sem essa opção de compra.

No ano passado, foi também negociado a entrega da vacina tríplice viral ao Brasil e, em diversas crises nos últimos anos, estados do país puderam recorrer à ajuda da organização.

Durante a crise da Zika, a Opas e a OMS foram fundamentais para a resposta dada pelo país.

Também foi graças ao papel dos diferentes governos na OMS que o acesso a remédios e quebra de patentes passou a ser uma realidade. O Brasil ainda revolucionou a forma pela qual a OMS passou a lidar com o vírus do HIV. Foi também um brasileiro que, entre os anos 50 e 70, liderou a entidade e a consolidou como referência mundial.

Nova ordem

Desde o início da crise, o Brasil passou a adotar uma postura considerada como "problemática" na OMS. Nas reuniões, optou na maioria das vezes pelo silêncio ou simplesmente não aparecer, enquanto Bolsonaro atacava Tedros Ghebreyesus, o diretor da agência.

Em cada comentário da agência, porém, o governo apresentava queixas à cúpula. Cartas ainda foram enviadas pelo Itamaraty e foram interpretadas como pressões sobre Tedros.

Mas, dentro do governo, a aposta é de que a aliança com o governo americano compense a ruptura com o resto das entidades e que o Brasil faça parte de um grupo de países que estão questionando o próprio multilateralismo.

De uma forma sistemática, o Brasil tem repetido as críticas de Donald Trump e seus aliados contra as Nações Unidas e o sistema multilateral.

Os golpes contra o multilateralismo já tinham sido iniciados em 2019, com a paralisação completa dos tribunais da OMC. Para Trump, a entidade liderada pelo brasileiro Roberto Azevedo favoreceu o crescimento comercial da China. Quando, sem explicações plausíveis, Azevedo decidiu anunciar que estava se retirando do comando da OMC, rapidamente senadores aliados de Trump foram às redes sociais para dizer: "apague a luz ao sair".

Na OMS, o padrão americano foi repetido. O governo dos EUA iniciou uma série de ataques contra o diretor-geral Tedros Ghebreyesus o acusando justamente de aceitar a influência chinesa. Ainda que a agência tenha falhado na gestão da pandemia, seu alerta foi lançado ao mundo cinco semanas antes de Trump admitir a gravidade da crise e iniciar medidas.

Aproveitando-se do contexto e do início do vírus ter sido identificado na China, o governo americano proliferou uma campanha com o objetivo de minar a credibilidade da OMS e de Pequim. O golpe final foi dado na sexta-feira passada, quando Trump anunciou que estava rompendo com a agência.

Existe, de fato, um processo nos bastidores para redesenhar a nova ordem internacional pós-pandemia. Os Estados Unidos, a fim de isolar a China, rival comercial, articulam um G7 ampliado como uma espécie de novo centro do poder. Mas, desta vez, composto apenas por seus principais aliados.

Na semana passada, o presidente americano, Donald Trump, fez dois anúncios que compõem uma reação: a organização de um G7 com novos países convidados e sua ruptura com a OMS, por supostamente estar aliada aos chineses.

Para fontes diplomáticas ouvidas pela coluna, Trump está tentando criar uma frente para conter a China e, para isso, precisa estabelecer novos organismos ou fóruns internacionais. É nesse sentido que vem a proposta da Casa Branca por uma reunião do G7 com Índia, Brasil, Austrália, Coreia do Sul e Rússia. Trump, ao fazer o anúncio, deixou claro que o G7 estava "obsoleto" e que precisaria ser recriado.

No fundo, porém, sua manobra foi interpretada de outra maneira: o esvaziamento não é do G7, mas do G20, fórum onde os americanos precisam dividir o espaço com a China.

Não é por acaso, sinalizam negociadores, que desde o início da pandemia o G20 tem sido inoperante e vazio. Diversas reuniões terminaram sem uma declaração final, vetadas pelos EUA num passo deliberado para minar sua influência.

Chanceler abordou "nova ordem" em reunião com Bolsonaro

O chanceler brasileiro Ernesto Araújo já havia feito uma sinalização neste sentido na reunião de ministros com Bolsonaro do dia 22 de abril, liberada pela Justiça. Naquele momento, ele indicava como de fato uma nova ordem estava sendo desenhada. E apostava como o Brasil poderia fazer parte do grupo de países que ajudariam a desenhar essa nova estrutura.

Em encontros internacionais e artigos, o chanceler também tem aproveitado para alertar ao mundo sobre o risco de um "plano comunista" infiltrado em organismos internacionais.