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Jamil Chade

Apoiado por Itamaraty, chefe da OEA derruba brasileiro que investiga abusos

19.mar.2019 - Nos EUA, Bolsonaro se encontra com o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro - Reprodução/Twitter
19.mar.2019 - Nos EUA, Bolsonaro se encontra com o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

25/08/2020 07h43

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O brasileiro Paulo Abrão foi vetado antes de assumir um novo mandato no cargo de secretário-geral da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sob a alegação de denúncias administrativas. A medida abre uma crise inédita no sistema da Organização dos Estados Americanos (OEA). Abrão foi escolhido para o cargo em 2016 e, neste mês, teria seu mandato renovado. Por unanimidade, a Comissão Interamericana aprovou em janeiro o nome do brasileiro para o período até 2024, mas o nome do jurista acabou sendo bloqueado pelo secretário-geral da OEA, Luis Almagro.

O próprio Almagro foi reeleito neste ano e foi apoiado por Brasil e Colômbia diante de seu papel contra o regime de Nicolas Maduro. Mas, segundo fontes de alto escalão dentro da entidade, foi pressionado a não renovar o mandato do brasileiro, que tinha a função de apurar violações de direitos humanos pelo continente. Procurado, o Itamaraty até o momento não se pronunciou sobre a maior crise no sistema de direitos humanos da entidade.

A CIDH é um órgão vinculado à OEA e, nas últimas seis décadas, manteve um papel central no monitoramento independente das violações de direitos humanos no hemisfério. Missões de investigação da entidade para a Argentina em plena ditadura em 1979 e outras ações da Comissão foram consideradas como históricas.

Apesar da vinculação, a Comissão é autônoma. Mas o secretário-geral decidiu não avançar no processo de renovação do mandato do brasileiro, no que está sendo acusado pela Comissão como um "grave ataque contra sua autonomia e independência como o principal órgão" da entidade.

Antes de seu trabalho na CIDH, o brasileiro foi o presidente da Comissão de Anistia do Brasil, secretário nacional de justiça e presidente do Comitê Nacional para Refugiados.

Durante seu mandato na agência continental, ele denunciou violações em diferentes países, inclusive na Venezuela, Colômbia, Bolívia, EUA e Brasil. Ele chegou a visitar o projeto de muro que os americanos pensavam em construir na fronteira com o México para denunciar a situação. Já Almagro é visto como uma pessoa próxima ao governo americano.

Ainda em 2019, cinco governos, entre eles o de Jair Bolsonaro, submeteram uma carta ao gabinete de Abrão. Nela, os países sugeriam que a CIDH "respeitasse a autonomia dos estados", um recado que foi recebido como um alerta sobre as críticas que ele estava tecendo sobre a situação de direitos humanos nesses locais.

Discussão sobre autonomia

Na carta, o Itamaraty e os demais governos apontavam que os estados têm o "direito" de primeiro tentar dar uma resposta a uma violação usando suas próprias instituições. O documento também pedia que a CIDH levasse em consideração as realidades políticas, econômicas e sociais dos países ao determinar reparações às violações.

Um ano depois, é o mandato de Abrão que é vetado. "Em 15 de agosto de 2020, último dia da vigência contratual, o secretário-geral da OEA informou à CIDH, sem consulta prévia, sua decisão de não "avançar no processo de nomeação do secretário-executivo" da CIDH", disse a Comissão.

"Na prática, essa decisão se traduz em uma recusa de prorrogação do contrato de trabalho. A Comissão anuncia à comunidade internacional que esta decisão unilateral do secretário-geral constitui um flagrante desrespeito à sua independência e autonomia, buscando a separação de fato do secretário-executivo, e anular a decisão de renovação adotada 8 meses antes pela CIDH", denuncia.

"Chama a atenção da Comissão o fato de que durante este período não recebeu nenhum questionamento do secretário-geral sobre a validade do procedimento de renovação", alertou.

Para justificar a decisão, Almagro citou dois relatórios como base para sua decisão. Um deles era sobre os poderes do secretário-geral em relação ao processo de nomeação do secretário-executivo. A Comissão, porém, rejeita tal interpretação.

"Dado que o poder de nomear e retirar pessoal de confiança de suas funções é indispensável para que a Comissão cumpra seu mandato de supervisão e promoção dos direitos humanos no Hemisfério, as normas sobre as quais o sistema interamericano de direitos humanos foi construído respondem à necessidade de salvaguardar suas competências e autonomia institucional, de modo que os atores externos não possam determinar quem ocupa esses cargos, muito menos quando eles devem ser destituídos do cargo", apontou.


Denúncias contra o brasileiro

Um segundo informe que baseou a decisão de Almagro foi um relatório confidencial da Ombudsperson da entidade. Fontes dentro da entidade indicam, na condição de anonimato, que o brasileiro recebeu mais de 60 denúncias contra sua gestão para o período de 2019, inclusive de contratações de funcionários que não teriam seguido processos regulares.

Segundo a CIDH, porém, não há explicações para o fato de que a entidade tenha esperado até os últimos dias do contrato de Abrão para submeter sua avaliação. O documento, segundo fontes, estaria pronto desde novembro de 2019. Mas só agora foi utilizado. A Comissão também insiste que sempre esteve disposta a avaliar as.denúncias.

"Neste sentido, é inadmissível que se tente usar um relatório institucional confidencial da Ombudsperson ou informações de que uma investigação administrativa está sendo iniciada como base para uma decisão sobre a não renovação administrativa do secretário-executivo da CIDH, em clara violação às reiteradas normas do Sistema", aponta a Comissão, que insiste que a presunção de inocência do brasileiro deve ser respeitada.

No comunicado, a entidade elogiou o trabalho do brasileiro. "Graças à sua liderança, a Comissão conseguiu fortalecer um acesso à justiça interamericana mais eficaz e acessível para as vítimas de violações de direitos humanos nas Américas, o monitoramento integrado e oportuno e o fortalecimento das ações de cooperação técnica", destacam.

Segundo a entidade, graças a sua autonomia e independência reforçadas, a CIDH realiza seu trabalho de "forma imparcial, livre de qualquer influência política e é um exemplo e uma referência para o mundo".

"A CIDH reitera seu voto de confiança na renovação do mandato do secretário-executivo, expressando sua disposição de dialogar com o secretário-geral e todos os órgãos da OEA a fim de alcançar uma solução que respeite a autonomia e a independência da Comissão", afirmou o órgão.

A entidade ainda alerta que a OEA até agora não repassou a totalidade dos recursos aprovados pela Assembleia Geral para o funcionamento da Comissão. O alerta é de que tal medida "tende a enfraquecer a CIDH".

"Ao longo de seus 61 anos de história na defesa dos direitos humanos, a autonomia e independência da Comissão Interamericana foram fortalecidas e defendidas a todo custo como um dos pilares centrais da legitimidade pelos Estados membros, pela sociedade civil e pelas vítimas de violações dos direitos humanos", destacou a CIDH.

Resposta de Almagro

Horas depois do comunicado da Comissão, Almagro emitiu um comunicado indicando que "infelizmente, não se avançou no processo de designação do Secretário Executivo da CIDH devido a existência de dezenas de denúncias funcionais apresentadas aos mecanismos institucionais responsáveis por garantir e promover os direitos dos funcionários da Organização e por tratar, neste caso, as reiteradas denúncias sobre possíveis violações de seus direitos".

"Lamentamos que a CIDH, apesar de ter conhecimento de dezenas de denúncias, em alguns casos durante meses, não as tenha transmitido ao Escritório do Inspetor-Geral para sua comprovação, o que deveria ter sido feito pela Secretaria-Geral. Essa falta de processamento é um golpe sério para sua credibilidade", denunciou. "Obviamente, a seriedade e gravidade das reclamações acima referidas e a necessidade de as fundamentar não permitiram a aprovação correspondente a esta designação, como foi feito em 2016", explicou o uruguaio.

"Foi assegurada a presunção de inocência, bem como que não há impunidade ou indefesa nas denúncias de violação dos direitos dos servidores públicos da CIDH ou de qualquer órgão da Organização. Não enquanto eu for secretário-geral", disse.

Ele, porém, atacou a Comissão. "É totalmente antiético e repreensível tentar criar confusão sobre o que constitui a responsabilidade funcional individual e a responsabilização de um ou mais funcionários e o que constitui a autonomia da CIDH", disse.

"A função do Secretário-Geral tem sido garantir a autonomia e independência da CIDH tanto no plano material quanto na área administrativa, o que é feito e continuará sendo feito sem falhas. Da mesma forma, espera-se que sejam compreendidas as responsabilidades institucionais do Secretário-Geral com relação aos assuntos funcionais da organização. Se reconhece a vontade de diálogo expressa e espera-se que possa ser retomado depois de ter sido interrompido unilateralmente pela CIDH, no dia de ontem", completou.