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Jamil Chade

Covid-19: devemos pôr um fim à mercantilização dos serviços públicos

 Conselho de Direitos Humanos da ONU - Xinhua/Xu Jinquan
Conselho de Direitos Humanos da ONU Imagem: Xinhua/Xu Jinquan

Colunista do UOL

13/10/2020 06h01

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Um artigo de opinião de um grupo de relatores especiais, atuais e antigos, das Nações Unidas*

A pandemia da COVID-19 expôs as terríveis consequências de décadas de privatização e mercantilização. De um dia para o outro, vimos hospitais transbordando, trabalhadores da saúde sem equipamento de proteção, casas de repouso transformadas em necrotérios, filas de semanas para fazer os testes, e escolas lutando para se conectar com crianças confinadas. Durante todo esse tempo, as pessoas foram instadas a ficar em casa, quando na verdade centenas de milhões não tinham moradia adequada, não tinham acesso à água e ao saneamento, e não tinham proteção social. 

Precisamos de uma mudança radical de direção. Décadas de transferência do fornecimento de bens e serviços sociais para entidades privadas resultaram, muitas vezes, em ineficiência, corrupção, diminuição da qualidade, aumento de custos e o consequente endividamento das famílias. Os pobres foram marginalizados e o valor social das necessidades básicas, como moradia e água, foi minado.   

Houve um lampejo de esperança quando, de repente, em meio à crise, as pessoas começaram a reconhecer a centralidade dos serviços públicos para o funcionamento da sociedade. "O que esta pandemia revelou, é que existem bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado", resumiu o presidente francês Emmanuel Macron. Mas, além das declarações políticas, há sinais preocupantes de que isso não tenha sido nada além de retórica.

Veja o que está acontecendo com a água, um bem ainda mais vital agora que lavar as mãos é a melhor maneira de se proteger do vírus. Cerca de 4 bilhões de pessoas no mundo sofrem de grave escassez de água durante pelo menos um mês do ano.  Este é o caso, por exemplo, na província chilena de Petorca devido ao uso excessivo de água por empresas abacateiras que operam na área.  O Ministério da Saúde decidiu aumentar a alocação diária de água para 100 litros por pessoa, só que apenas 8 dias depois revogou a decisão, colocando os interesses das empresas privadas acima dos direitos de sua população.

E o que dizer da tão esperada vacina?  Reconhecendo que não se pode confiar nas forças de mercado, mais de 140 líderes e especialistas mundiais apelaram aos governos e instituições internacionais para garantir que os testes, tratamentos e vacinas COVID-19 sejam disponibilizados a todos sem nenhum custo. Isto parece irrealista, no entanto, já que as empresas farmacêuticas continuam a competir pela primeira vacina e a vendê-la a quem fizer a maior oferta. 

O setor educacional também foi afetado.  Apesar do fato de centenas de escolas privadas terem abandonado seus alunos e funcionários durante a crise, o Banco Mundial mantém sua posição de que sistemas privatizados e soluções de mercado devem ser promovidos a todo custo. Esta é uma recomendação particularmente influente, quando os países de baixa renda estão se endividando.

O mantra global de praticar uma "distância saudável" para evitar a propagação do coronavírus é inútil para as 1,6 bilhões de pessoas que vivem em moradias inadequadas e para os 2% da população mundial que estão desabrigados. Pior ainda, na área de habitação, a maioria dos governos parece não estar disposta a regular os atores financeiros que ajudaram a criar estas condições.   A financeirização de moradias resultou no aumento dos aluguéis, no despejo deinquilinos de baixa renda, na falta de manutenção e no açambarcamento de unidades vazias para aumentar os lucros. Os efeitos são ainda mais graves no contexto da pandemia.

Com a mercantilização de bens e serviços públicos, os governos não estão cumprindo suas obrigações em matéria de direitos humanos. Não somos mais titulares de direitos, senão clientes de empresas privadas que buscam apenas a maximização do lucro e são responsáveis apenas perante seus acionistas. Isto afeta nossas democracias, exacerba as desigualdades e gera uma segregação social insustentável.  

Somos seis especialistas independentes das Nações Unidas, atuais e antigos Relatores Especiais sobre direitos humanos. Nesta qualidade, queremos compartilhar esta mensagem: levar os direitos humanos a sério requer o abandono da ideia de que os Estados ocupem o segundo lugar em relação às entidades privadas. Precisamos de alternativas. Chegou o momento de dizer claramente que a mercantilização da saúde, educação, moradia, água, saneamento e outros bens e serviços relacionados aos direitos humanos exclui os mais pobres e pode levar a violações dos direitos humanos.   

As obrigações de direitos humanos não cessam para os Estados quando eles delegam bens e serviços básicos a empresas privadas e ao mercado, muito menos quando o fazem sob condições que prejudicam o cumprimento dos direitos e a subsistência de muitas pessoas. Também é necessário que as organizações multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, deixem de impor a privatização dos serviços públicos aos países.  

Também pedimos a todos aqueles que estão comprometidos com os direitos humanos que comecem a enfrentar as consequências da privatização. Assim como algumas organizações de direitos humanos começaram a alertar sobre a necessidade de sistemas fiscais justos, é hora de buscar a responsabilização dos responsáveis pelos impactos terríveis da privatização.  Os direitos humanos podem ajudar a articular o tipo de bens e serviços públicos que desejamos: participativos, transparentes, sustentáveis, responsáveis, não discriminatórios e ao serviço do bem comum.

Estamos em uma emergência. Esta pandemia é provavelmente a primeira de uma série de grandes crises que se avizinham, desencadeadas pela emergência climática. Esta semana, o mundo vai comemorar o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, imerso em uma recessão econômica sem precedentes desde a Grande Depressão. A crise da COVID-19 deverá empurrar mais 176 milhões de pessoas para a pobreza. Cada uma delas pode ver seus direitos humanos violados, a menos que haja uma mudança drástica de modelo e investimento em serviços públicos de qualidade. Não é uma normalidade a que se possa voltar.  

* Koumba Boly Barry, Relatora Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Educação

Olivier De Schutter, Relator Especial das Nações Unidas sobre pobreza extrema e direitos humanos; ex-Relator Especial sobre o direito à alimentação

Léo Heller, Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à água potável e saneamento

Leilani Farha, Ex-Relatora Especial das Nações Unidas sobre moradia adequada

Magdalena Sepúlveda Carmona, Ex-Relatora Especial das Nações Unidas sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos

Juan Pablo Bohoslavsky, ex-Especialista independente das Nações Unidas em dívida externa e direitos humanos.