Mordaça no esporte só vale para atletas e torcedores. Nunca para políticos

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Stalin tinha medo do Spartak. Ele sabia que, naquelas arquibancadas, o grito não era apenas de gol. Os nazistas, anos depois, temeram o Dínamo Kiev. Eles sabiam que uma vitória não era apenas por um troféu. Nos anos 50, os argelinos formaram uma seleção clandestina. Os franceses tentaram impedir a fuga dos jogadores que se uniram ao time. Não temiam serem derrotados em campo. Mas nas trincheiras.
Em jogo, em todos esses casos, estava a liberdade.
Em 1978, em plena ditadura argentina, o general Videla iria cumprir uma tradição da histórica das Copas. Receberia os finalistas: o time de casa e os holandeses. Os anfitriões não tiveram escolha e estavam la. Já os europeus optaram por não aparecer, num ato político de protesto. Joseph Blatter me conta que Videla ficou furioso e João Havelange, ofendido diante da postura do time europeu, decidiu que tais encontros não deveriam mais ocorrer para não criar saia justa?aos ditadores.
Hipócrita, o futebol martela desde então que esporte e política não se misturam, enquanto regras proliferam limitando o espaço cívico para fora dos estádios. A ideia ganhou outros esportes e foi importada pelo COI aos seus eventos. Mas, curiosamente, essa é uma regra que vale apenas para dois grupos: esportistas e torcedores. Para os políticos e dirigentes esportivos, as leis são solenemente pisoteadas.
Havelange continuou visitando ditadores africanos, sendo recebido por Pinochet, regimes autoritários no Oriente Médio.
Ele não foi o único. A CBF não viu qualquer problema quando alugou a seleção em 2010 para que Robert Mugabe aparecesse em todos os jornais do país ao lado de Kaká. No mundo olímpico, a repressão chinesa jamais preocupou o COI em 2008. Ou em Sochi em 2014.
No esporte, não se pode levar ao estádio um cartaz pedindo liberdade em um país onde existe ditadura, mas se permite que o ditador use o palco para se promover. Os Jogos Europeus em Minsk em 2019 pareciam ignorar Aleksandr Lukashenko. Tampouco parecia ser um problema que Ilham Heydar Aliyev, presidente do Azerbaijão, fosse também o presidente do Comitê Olímpico de seu país, uma "tradição" em diversos outros países onde sobra propaganda e falta democracia.
Não se pode fazer um gesto de defesa dos direitos humanos durante um evento esportivo. Mas se permite que aquele mesmo torneio seja manipulado para abafar crimes e abusos.
Não se permite levantar o uniforme para mostrar uma mensagem de apoio à democracia. Mas se premia regimes autoritários no Catar e em tantos outros lugares com a concessão de direitos de sediar grandes eventos. Por alguns dias, aqueles líderes ilegítimos ganham uma chancela de legitimidade, entregam medalhas e sorriem para o mundo. Ou seria um deboche?
Quando, nesta terça-feira, a 1ª Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva advertiu a jogadora Carol Solberg pela frase "Fora, Bolsonaro" ao final de um evento, o argumento era de que apenas estavam cumprindo o regulamento. "Você não está ali para se manifestar de forma politicamente", disse o presidente da comissão, Otacílio Araújo.
Ele tem razão. O monopólio do uso político do esporte está nas mãos dos políticos e de seus dirigentes cúmplices. Aos demais, a lei estabelece a mordaça, um ato político.
Com o argumento de se evitar a política no esporte, instituições e suas leis garantem que apenas quem está no poder possa politizar o esporte, o torcedor e a emoção.
De forma consciente ou não, quem defende que atletas e torcedores não se manifestem politicamente está simplesmente prestando um enorme serviço para perpetuar essa manipulação. E sufocar qualquer grito de cidadania.
Quando um atleta se cala, portanto, o que está em jogo é a liberdade.
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