Topo

Jamil Chade

O dia em que troquei Biden por Pelé

O ex-jogador Pelé - Sandro Baebler /Hublot via Getty Images
O ex-jogador Pelé Imagem: Sandro Baebler /Hublot via Getty Images

Colunista do UOL

23/10/2020 18h07

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Abertura da Copa de 2010 na África do Sul. Era meu segundo Mundial. Mas sabia que, naquele jogo, minha função não era olhar para o campo. Horas antes, coloquei terno e gravata e fui ao estádio.

Meu chefe e amigo Antero Greco tinha outros planos para a edição do dia seguinte. Minha missão era buscar os cartolas e políticos naquela partida que marcava finalmente o desembarque da Fifa ao solo africano. Aos poucos, pelo labirinto de escadas e portas do local, encontrei um caminho até a ala VIP do estádio. Não sei como, mas sem a pulseira de convidado e sem ingresso, entrei no local de segurança máxima.

Logo de cara, encontrei Cruyff. Rendeu uma entrevista forte. "Eu não pagaria para ver esse Brasil jogar", disse. Reparei que alguns funcionários da Fifa que me conheciam tinham me "descoberto" ali em zona proibida. Mas não sabiam como me abordar. Afinal, não sabiam se eu tinha sido convidado ou não.

Quem me salvou foi Ban Ki Moon, com quem eu já havia viajado pela África um ano antes. Dias antes do jogo, também nos falamos em Pretória. Mas, naquela noite, batemos um bom papo sobre como o futebol era capaz de unir num só local personalidades que ele, como então chefe da ONU, jamais conseguiria. Pensei: estou blindado até o final do jogo.

Mas logo vi um senhor alto, de cabelo branco. Era Joe Biden, enviado por Barack Obama para representar o governo americano naquela primeira final na África. Lentamente, para não chamar a atenção da segurança, me aproximei e consegui ficar a uma distância que podia ouvir o que ele dizia. Uma mulher ao seu lado explicava o jogo entre os donos da casa e o México.

Pensei: vou ficar por aqui. Não há ninguém mais importante nessa ala VIP que me possa gerar uma boa matéria sobre os bastidores do poder. À medida que o jogo esquentava, ficava claro que dali não sairia matéria alguma. Mas eu persistia. Uma frase, um comentário, um desabafo seria suficiente. Mas, infelizmente, nada.

Foi então que vejo sentado algumas fileiras mais longe a figura incontornável da história do futebol: Pelé. A cada instante, os demais convidados da ala VIP se aproximavam timidamente para bater uma foto do ídolo máximo.

Não tive dúvidas: abandonei Biden. E fui fisgado pelo comportamento do brasileiro. Ele assistia ao jogo. Não falava. Concentrado na bola. Parecia acompanhar cada lance. Era, no fundo, intrigante.

Não era o Pelé das câmeras, do centro das atenções no campo ou dos patrocínios.

Ao terminar, enquanto as vuvuzelas dominavam o estádio diante do bom jogo da África do Sul, Pelé optou por sair sem dar entrevistas. Os demais convidados, como Desmond Tutu, Thabo Mbeki e outros, garantiram uma matéria sobre os bastidores daquele que era o primeiro Mundial em solo africano.

Anos depois, ele confirmaria em uma entrevista a um meio sul-africano o que eu tinha presenciado em seu semblante. Segundo ele, o gol de Siphiwe Tshabalala naquele dia havia sido um dos momentos mais bonitos das Copas e levantado uma nação. Pelé não estava apenas pensando no futebol, mas em seu impacto social.

Naquele dia, não houve matéria sobre o rei. Por sorte tive outras entrevistas com ele. Mas aquela foi uma rara oportunidade de ver como o maior jogador de todos viveu um momento histórico na trajetória do futebol. Uma história que ele mesmo ajudou a construir a cada passe, a cada gol e a cada aparição durante os mais de 40 anos depois de sua aposentadoria.

Pelé, em silêncio, era o futebol.

Já Biden...bom, tentaremos uma entrevista para a Copa de 2026, quando ele será o anfitrião.