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Jamil Chade

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Ausência de Bolsonaro em "cúpula da vacina" é retrato do país no mundo

Bolsonaro cobre os olhos com máscara  - Adriano Machado/Reuters
Bolsonaro cobre os olhos com máscara Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

24/05/2021 06h09

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Resumo da notícia

  • Presidente foi um dos poucos líderes a não participar de cúpula do G-20 sobre a pandemia
  • Bolsonaro tampouco participa de Assembleia Mundial da Saúde, nesta semana
  • Brasil ajudou China e Rússia a bloquear proposta de dar maior independência para a OMS investigar surtos pelo mundo

Na sexta-feira, os principais líderes do mundo se reuniram de forma virtual para tratar do acesso e distribuição de vacinas, o principal assunto no planeta hoje e que pode definir de que maneira a pandemia da covid-19 será eventualmente controlada. Nesta semana, a OMS realiza sua Assembleia Mundial da Saúde, inclusive com a participação de chefes de estado e um alerta da ONU de que o mundo está "em guerra" contra a covid-19.

Mas a ausência do presidente Jair Bolsonaro nas reuniões é o retrato internacional de seu governo, irrelevante e, na prática, distante da mesa de negociações sobre o futuro do mundo.

O presidente, enquanto os principais líderes mundiais tomavam a palavra no G-20 no final da semana passada, preferiu usar seu tempo para ir a um evento no Maranhão e ofender Flávio Dino. Por iniciativa da UE e do governo da Itália, o G-20 reuniu as maiores empresas do mundo, especialistas e, claro, governos. Entre os pontos aprovados ao final do encontro, países estabeleceram o que pode ser a base de uma futura defesa coletiva contra pandemias. Nos diversos discursos, o encontro e a declaração assinada eram chamados de "histórico".

A cúpula — virtual — contou com os líderes do Reino Unido, Holanda, México, Indonésia, Itália, Japão, Canada, Espanha, França, Alemanha, China, Argentina, Turquia, África do Sul e Coreia do Sul, além dos chefes da FAO, Banco Mundial, UE, OMC, OCDE, FMI, OMS, ONU e outras instituições internacionais. Outros países convidados e que não fazem parte do G-20 também enviaram seus presidentes ao evento. A Rússia foi representada por sua vice-primeira-ministra. Joe Biden enviou sua vice, Kamala Harris.

Já o Brasil foi representado apenas pelo chanceler Carlos França. Dos mais de 20 países no evento, apenas sauditas e australianos seguiram o mesmo padrão do Brasil, com uma participação abaixo do que o protocolo sugeria. Sem a presença do presidente, o Itamaraty foi colocado para o final da fila, horas depois de os principais discursos já terem sido proferidos. Em diplomacia, nada é por acaso. Repito: nada.

Entre negociadores do G-20, os comentários eram de incompreensão. "Se eu estou sendo pressionado em casa por vacinas, a primeira coisa que faço é participar de uma cúpula mundial cujo objetivo é garantir a distribuição de doses", comentou um experiente embaixador europeu.

No Itamaraty, o novo discurso é o de que a "diplomacia da saúde" é a prioridade e que postos pelo mundo estão sendo engajados para buscar acesso a doses. De fato, França prolifera reuniões com parceiros internacionais, inclusive restabelecendo uma aproximação com a OMS.

Mas mesmo dentro do governo, queixas internas são ouvidas por parte de diplomatas que alertam que o assunto não pode ser apenas deixado para ministros. "O envolvimento de um chefe de estado é fundamental nesses casos", destacou um dos representantes do Itamaraty.

Foram vários os casos nos últimos meses de líderes internacionais que se mobilizaram, pegaram o telefone e proliferaram reuniões para garantir acordos de vacinas e superar impasses.

Já Bolsonaro fez questão de ficar de fora do grande debate internacional e a ausência no G-20 não foi nem um problema de agendas e nem um acidente. Em diplomacia, o nível de participação de um estado num debate é a tradução da prioridade que dá ao tema.

Nas inúmeras reuniões promovidas pela OMS ao longo dos últimos 15 meses com a presença de chefes de estado, nenhuma delas contou com o brasileiro. Nesta semana, a Assembleia Mundial da Saúde volta a se reunir, uma vez mais com a presença de líderes internacionais. E, mais uma vez, a participação brasileira se limita a um discurso de ministros. "Estamos em guerra contra a covid-19", alertou na abertura do evento o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres.

Conforme a coluna revelou com exclusividade na semana passada, o Brasil, de fato, ajudou China e Rússia a bloquear uma proposta de europeus para que a OMS ganhasse novos poderes para poder investigar surtos em qualquer local do mundo, com o envio de missões técnicas imediatas.

Há um ano, o discurso dos aliados de Bolsonaro era justamente a de que a agência mundial precisava romper a influência de "comunistas" dentro da OMS e agir de forma independente. Na prática, sua ação foi a de impedir maiores poderes para a OMS, repetindo quase a mesma postura de chineses.

Ao esnobar as cúpulas pelo mundo, Bolsonaro aprofunda a imagem de um governo que não confere a devida prioridade ao principal tema mundial - o acesso às vacinas -, que não desperta confiança como interlocutor no desenho de um novo mundo, que se transformou num dos rostos mais reconhecidos da crise de humanidade. E, claro, que tem a luta por se agarrar ao poder acima da saúde de sua população e o destino de um país.