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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Por acordo com farmacêuticas, Brasil resiste a quebrar patentes de vacinas

Presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto - Ueslei Marcelino/Reuters
Presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

Colunista do UOL

27/05/2021 05h49

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Resumo da notícia

  • Governo diz que proposta de países emergentes de suspender patentes gera "problema de segurança jurídica" em acordo com AstraZeneca
  • Brasília também cita impacto que medida poderia ter em negociações com Pfizer, Moderna e Janssen
  • Itamaraty defende na OMS, OMC e G-20 que acordos voluntários de transferência de tecnologia sejam estabelecidos, com participação de empresas
  • Postura do governo brasileiro vai no mesmo sentido das propostas de empresas farmacêuticas

Por acordos com as principais empresas farmacêuticas e amarrado em contratos, o governo brasileiro resiste em aderir à proposta de suspensão de patentes de vacinas contra a covid-19, apoiada por mais de 60 países pelo mundo.

A aposta do governo é de que, sem embarcar numa retórica de ameaças de quebra de propriedade intelectual, haveria um espaço maior para garantir a entrega de vacinas fabricadas pelas multinacionais ao país.

Em outubro do ano passado, indianos e sul-africanos apresentaram uma proposta na OMC (Organização Mundial do Comércio) para que as patentes de vacinas e todas as demais tecnologias envolvidas na luta contra a pandemia fossem suspensas. Isso permitiria que qualquer laboratório do mundo fabricasse versões genéricas dos produtos, garantindo um maior acesso às vacinas e tratamentos.

Mas o Brasil passou a ser um dos raros países em desenvolvimento a rejeitar a proposta. A pressão sobre o governo de Jair Bolsonaro aumentou depois que EUA e China também deram seu apoio ao projeto dos indianos, ainda que limitando a ideia da suspensão de patentes apenas para vacinas. O Itamaraty, porém, manteve sua postura de rejeição ao projeto.

Na semana passada, o novo chanceler Carlos França, também citou a situação com as multinacionais ao explicar a postura do governo sobre patentes em uma audiência na Câmara dos Deputados convocada pelo ex-ministro da Saúde e deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP).

Segundo ele, a proposta da Índia e África do Sul era "agressiva" e chamou o gesto de "quebra radical" de patentes que iria "muito além" dos acordos de propriedade intelectual.

De acordo com ele, a proposta "criava problema de segurança jurídica na formulação de contratos que temos de assistência técnica com a AstraZeneca e a aquisição que queremos ter de vacinas da Pfizer, Janssen e Moderna".

Fortemente pressionado e diante de metas não cumpridas de vacinação, o governo de Bolsonaro apenas nos últimos meses passou a ampliar sua busca por vacinas. Atores do mercado internacional, porém, alertam que o Brasil desembarcou num momento "errado", "com meses de atraso" e, portanto, com um poder de barganha reduzido.

As empresas farmacêuticas estariam mais fortalecidas para negociar neste momento, diante de elevados pedidos e uma verdadeira fila de governos que disputam a compra de doses.

Se não bastasse, algumas das empresas estão sendo ameaçadas por processos em tribunais por não conseguir atender aos cronogramas de vendas já realizadas, o que tem colocado uma pressão ainda maior no abastecimento global.

Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde informou nesta semana que reduziu para 41,9 milhões a a previsão de doses de vacinas a serem recebidas em junho. O volume é 12 milhões inferior ao que estava sendo esperado, diante de um atraso na produção pela Fundação Oswaldo Cruz. O governo também indicou que espera antecipar a chegada de outras vacinas, programas apenas para o final de 2021.

Contratos protegem patentes

Nos últimos meses, a realidade é que os contratos que empresas farmacêuticas a submeteram a diferentes governos pelo mundo revelam condições estritas e uma garantia de proteção de patentes.

Num deles, assinado pela Pfizer e pelo governo do Peru em setembro de 2020, fica estabelecido "condições prévias" a qualquer abastecimento, incluindo a proteção total de patentes, o estabelecimento de que a empresa é a "única" dona da propriedade intelectual e que ela fica isenta de qualquer obrigação de atender a uma indenização eventual decidida pela Justiça. Toda a cadeia de desenho, pesquisa, desenvolvimento e fabricação ficam protegidas de qualquer queixa que poderá existir.

Caberia ainda ao Ministério da Saúde do país andino provar, antes do início das entregas, que o país conta com "fundos adequados para se comprometer com as obrigações de indenização e outorgar proteção adequada aos provedores por reclamações surgidas do ou em conexão à vacina e seu uso".

No caso brasileiro, o acordo inicial da AstraZeneca com o governo também revela que a empresa estrangeira impôs condições sobre a venda da vacina contra a covid-19, manteve a patente sobre o produto e poderá até mesmo definir o que considera como a data do final da pandemia.

Assinado em 31 de julho de 2020, o acordo já deixava claro que mesmo se a vacina não desse resultados, não haveria um reembolso.

O texto ainda explicita que a empresa multinacional fica com o direito de estabelecer o fim do período da pandemia. A relevância de tal postura reflete no preço. Segundo as multinacionais, um fornecimento de doses a um preço de custo só poderia ocorrer enquanto a pandemia durar. Depois disso, os valores terão de ser renegociados.

O entendimento previa que toda a propriedade intelectual da vacina permanecesse nas mãos da AstraZeneca. Em trecho do tratado inicial, fica estabelecido de forma clara que a produção realizada pela Fiocruz poderia atender apenas o mercado doméstico brasileiro, sem a possibilidade de uma eventual exportação dos produtos num primeiro momento. Só quando a pandemia terminar é que "as partes avaliarão a possibilidade da extensão do território". Ou seja, uma exportação da Fiocruz.

Nova proposta

Apesar da escassez, o governo brasileiro continua a defender na OMS, OMC e mesmo no G-20 que apenas um acordo voluntário de transferência de tecnologia entre empresas e governos pode superar a crise de abastecimento.

A postura vai na mesma direção defendida pelo setor privado que, em debates internacionais, insiste que vêm realizando dezenas de acordos de transferência de tecnologia e sustenta a tese de que a quebra de patentes, sozinha, não garantirá um aumento da produção mundial.

Mas mesmo sem a participação do Brasil, os países emergentes continuam a apostar que a suspensão de patentes pode ser uma resposta à escassez crônica de vacinas. Na semana passada, 62 governos apresentaram à OMC uma nova proposta. Além dos co-patrocinadores, mais 40 países apoiam a ideia.

Pelo novo projeto, a suspensão de direitos de propriedade intelectual seria válida por pelo menos três anos, tempo considerado como suficiente para permitir que laboratórios em todo o mundo ampliem suas produções e fabriquem versões genéricas das vacinas e outros produtos.

Hoje, 90% de todas as 1,2 bilhão de doses administradas ocorreram nos países do G-20, enquanto os 40 países mais pobres receberam apenas 0,3% das vacinas.

Mas o projeto pode não ser suficiente para romper o impasse que acontece na OMC nas negociações sobre patentes. O governo americano deu seu apoio à ideia. Mas deixou claro que apenas aceitaria a iniciativa pra a suspensão de patentes de vacinas, não incluindo outros tratamentos e nem tecnologias para diagnósticos.

Já a UE alertou uma vez mais na sexta-feira, durante a cúpula do G-20, que não quer uma mudança nas leis de patentes e que aposta num caminho de cooperação entre empresas e países.

A diretora-geral da OMC, Ngozi Iweala, espera fechar um acordo até julho. Mas na esperança de romper a pressão que países ricos vêm sofrendo por conta das patentes, governos e empresas anunciaram doações ou vendas de 3,5 bilhões de doses para os países mais pobres até o final de 2022. Ainda que o número seja importante, ele é inferior ao que americanos e europeus compraram apenas para o ano de 2021.