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Jamil Chade

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Com seleção clandestina, craques trocaram a Copa pelo sonho da liberdade

batalha de Argel - Bretz Filmes
batalha de Argel Imagem: Bretz Filmes

Colunista do UOL

09/06/2021 12h04

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No terceiro capítulo da série Futebol e Política e que será apresentada ao longo da semana, a coluna explora a história de como jogadores consagrados e outros com um futuro promissor optaram por abrir mão de tudo para lutar por um ideal maior: a liberdade.

A série ainda trouxe nos últimos dias as seguintes reportagens:

CAPÍTULO 1:_ Impondo árbitro e taça, o fascismo usou o futebol como instrumento político.

CAPÍTULO 2: Stalin e a bola: quando as arquibancadas se convertiam em ameaças ao regime

CAPÍTULO 3

A Copa do Mundo de 1958 estava se aproximando e a seleção da França considerava que tinha chances de disputar o título. No ataque estavam nomes como Just Fontaine e Raymond Kopa.

Mas faltando apenas dois meses para o início do torneio, três peças chave da seleção francesa fugiriam. No dia 14 de abril, em plena madrugada, Mustapha Zitouni, Rachid Mekloufi e Abdelaziz Ben Tifour abandonariam o sonho de uma Copa do Mundo e um eventual título por uma causa maior: lutar pela independência de seu país, a Argélia.

Eles não estavam sendo convocados para pegar em armas. Naquele momento, num esforço de criar um sentimento nacional e lutar pelo fim do colonialismo francês, os rebeldes da Frente Nacional de Liberação decidiram que um enorme golpe de publicidade seria o de convencer os "argelinos" que estavam na seleção da França e em equipes de prestígio no país europeu a fugir e montar uma seleção clandestina de um país que sequer existia.

Até aquele momento, a Argélia era apenas uma região da França e qualquer jogador do norte da África era, automaticamente, um potencial nome para a seleção francesa.

O que parecia uma loucura vingou. Da França, os jogadores atravessaram as fronteiras com a Suíça e chegaram até a Itália. Dali, embarcaram para a Tunísia, onde a nova seleção estaria concentrada. Foram pelo menos 30 atletas que acabariam fazendo o caminho ao outro lado do Mediterrâneo. Desses, nove jogavam na primeira divisão, em grandes clubes.

Não faltaram momentos de tensão, como a decisão dos guardas da fronteira com a Suíça de parar o carro onde os jogadores rebeldes estavam. Mas, no lugar de exigir explicações, pediram autógrafos dos craques até então "franceses".

Se a operação de fuga dos clubes franceses ocorreu naquele dia 14 de abril de 1958, a preparação exigiu meses de conversas. A ideia de formar uma seleção havia sido do líder da FNL, Ahmed Ben Bella, que chegou a jogar pelo Olympique Marseille.

Naquele momento, seu movimento armado estava sendo derrotado pelas forças francesas. Em termos militares, a superioridade de Paris era clara. Mas sua arma secreta foi internacionalizar a crise, conseguir aliados e, assim, isolar politicamente a França.

Nessa estratégia de conquista de "corações e mentes" a favor da independência da Argélia, um símbolo que pudesse dar a volta ao mundo cairia como uma luva. Ele sabia da capacidade de mobilização do futebol e de como uma seleção teria um impacto doméstico e internacional.

Não por acaso, assim que o golpe funcionou, a Frente de Liberação Nacional emitiu um comunicado no dia 15 de abril de 1958 destacando a importância do ato e na formação de uma "identidade nacional argelina".

Mas, para alguns dos jogadores, a decisão envolveria abrir mão de uma carreira de sucesso. No caso de Mekhloufi, tratava-se do principal nome do Saint-Étienne, o campeão francês. Nem todos conseguiram atravessar as fronteiras. Hassen Chabri acabaria sendo preso, sob a suspeita de tráfico de armas, e cumpriria um ano de prisão.

Ainda assim, o projeto não foi abandonado. Irritada com a decisão de alguns dos principais craques de seu campeonato, a Federação Francesa de Futebol e o governo em Paris pressionaram a Fifa a banir qualquer seleção nacional que ousasse disputar uma partida contra o time clandestino da FNL.

Pressão também foi feita sobre os jogadores. Aqueles que estavam no serviço militar francês foram condenados a 10 anos de prisão por "deserção".

A fúria dos cartolas e autoridades franceses era tudo o que Argel desejava. Quanto mais a França atuava para impedir a seleção argelina de existir, mais sua fama crescia. Nos quatro anos seguintes, o time faria pelo menos 83 jogos, promovendo a ideia de uma Argélia independente e ainda arrecadando dinheiro para a luta armada.

Com alguns dos principais craques do futebol naquele ano, a seleção clandestina promoveu verdadeiras goleadas, batendo a temida Hungria por 6 x 2 e repetindo placares amplos contra a URSS e outros países.

Quem aceitava jogar contra os rebeldes era, na maioria das vezes, times do Leste Europeu ou outros do bloco comunista, incluindo Vietnã e China. Foram 57 vitórias, 14 empates e apenas 12 derrotas.

Quando a guerra terminou, em 1962, e a Argélia conseguiu sua independência, metade dos jogadores que tinham abandonado a França retornaram ao país europeu. Havia um temor de que seriam vaiados.

Mekhloufi, o craque, optou por não ir diretamente a um clube francês após o final da guerra. Por alguns meses, jogou pelo Servette, de Genebra, antes de retornar no ano seguinte ao seu velho Saint-Étienne. Ali, o argelino foi recebido com euforia. Em campo, ele retribuiu e levou o time a mais três títulos do campeonato francês.

O atleta ainda concluiria sua etapa no time em 1968, com dois gols numa final que daria o título da Copa da França ao Saint-Étienne.

No palco internacional, porém, sua seleção era outra: a da Argélia, agora inclusive reconhecida pela Fifa e pela ONU.