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Jamil Chade

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Em plena Guerra Fria, eliminatória para Copa foi definida fora de campo

O ditador chileno Augusto Pinochet - Reprodução/YouTube
O ditador chileno Augusto Pinochet Imagem: Reprodução/YouTube

Colunista do UOL

10/06/2021 13h01

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No quarto capítulo da série Futebol e Política e que está sendo apresentada ao longo desta semana, a coluna explora a história de uma partida válida para classificar uma seleção para a Copa de 1974 e que foi decidida longe dos campos. De um lado, Pinochet. De outro, os soviéticos.


A série ainda trouxe nos últimos dias as seguintes reportagens:

CAPÍTULO 1:_ Impondo árbitro e taça, o fascismo usou o futebol como instrumento político.

CAPÍTULO 2: Stalin e a bola: quando as arquibancadas se convertiam em ameaças ao regime

CAPÍTULO 3: Com seleção clandestina, craques trocaram a Copa pelo sonho da liberdade.

CAPÍTULO 4

Futebol e política não se misturam? Um episódio envolvendo dois ditadores, uma partida de futebol e uma eleição na Fifa provam, uma vez mais, que essa máxima é uma farsa.

Quem revela isso é o pesquisador Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha, em seu livro Dança das Cadeiras: A eleição de João Havelange à presidência da Fifa".

Segundo sua pesquisa inédita, em junho de 1974, o ditador Augusto Pinochet escreveu ao então presidente da FIFA, Stanley Rous, agradecendo pela possibilidade de o Chile disputar a Copa do Mundo daquele ano. Em um telegrama descoberto por Rocha, Pinochet "ressalta a suposta imparcialidade, independência em relação à política e autonomia dos burocratas da FIFA, imunes às pressões internacionais".

"Receba o reconhecimento do povo e governo do Chile pela decisão adotada por esta instituição a ratificar a classificação da nossa equipe", disse o ditador. "Ela reflete que a federação internacional de futebol e a sua direção é eminentemente desportiva e age independente de interesses políticos formulando votos de sucesso para o campeonato mundial", completou.

Segundo a pesquisa, porém, o telegrama é o desfecho de uma história que se inicia no ano anterior, quando Chile e União Soviética disputavam um playoff de ida e volta para a Copa do Mundo de 1974.

"Em 26 de setembro de 1973, a primeira partida foi disputada no estádio Lênin, em Moscou, na União Soviética, e terminou empatada em 0 a 0. A segunda partida deveria acontecer no Chile em novembro. No entanto, os soviéticos, que haviam rompido relações com o Chile após o golpe de 11 de setembro de 1973, decidem boicotar a partida, e pedem à FIFA a realização do jogo em território neutro", diz o livro.

Num comunicado, os russos foram claros:

"Sabemos que, como resultado de um levante fascista, que destituiu o governo legítimo da Unidade Nacional do Chile, prevalece a atmosfera de terrorismo sangrento, repressão, abolição das garantias constitucionais aliada com uma campanha contra os países socialistas e as forças democráticas, sendo forçadamente antissoviética, permitindo a violência contra cidadãos soviéticos. No Chile, o Estádio Nacional, suposto campo para a partida entre as equipes, foi transformado pela junta militar em um campo de concentração, lugar de tortura e execução de patriotas chilenos", diziam os russos.

A Fifa, porém, insistiu que não havia problema para realizar a partida e marca o jogo para 21 de novembro de 1973. Uma missão foi enviada para Santiago para avaliar as condições e, entre os membros, estava um brasileiro, o cartola Abílio de Almeida.

A "partida" acabou ocorrendo. Em campo, porém, estava apenas a seleção do Chile. Em 30 segundos, o gol da vitória foi marcado e o time opositor nem sequer havia feito a viagem até a América do Sul.

A seleção do Chile, assim, se classificou para a Copa de 1974. Presos políticos contam que, nos dias anteriores à partida, cerca de 7 mil dissidentes que estavam presos no estádio foram transladados para o deserto de Atacama.

Como aquela partida afetou a eleição de Havelange

Mas o jogo teve uma consequência inesperada. Segundo Rocha, por conta do sinal verde de Almeida para a realização da partida, o episódio acabou afastando a Confederação Brasileira de Desportos de Moscou, fazendo com que os soviéticos se abstivessem da eleição no primeiro turno na eleição de João Havelange e liberassem os votos dos países da Cortina de Ferro.

"Em questão, o acontecimento é uma prova de como os episódios da política em sentido estrito entrelaçam-se à esfera esportiva", revela o livro. "O elo de mediação, responsável por unir o campo esportivo à esfera política, é pura e simplesmente uma partida de futebol", destaca.

"Nas condições normais, o golpe dado por Pinochet em 1973 no Chile não teria tido nenhuma influência na eleição de 1974 da FIFA. Mas, diante de uma partida que opôs o bloco socialista às ditaduras latino-americanas, o problema emergiu como uma questão concreta. E os delegados e os candidatos à presidência da FIFA precisaram deliberar sobre o problema político", disse.

O livro revela que Havelange sabia da necessidade que tinha de um apoio soviético para a eleição de 1974. Nos anos que antecederam o pleito, o brasileiro promoveu uma aproximação às autoridades de Moscou que, por seu lado, estavam interessadas em garantir a escolha da capital soviética como sede da Olimpíada de 1980.

O Kremlin, assim, prometeu o apoio na eleição da FIFA para Havelange em troca do voto do brasileiro no COI. Partidas entre Brasil e URSS ainda foram realizadas em 1972 e 1973, com Havelange até mesmo dando uma medalha da CBD ao goleiro Yashin.

"A aliança parecia caminhar bem, quando irrompe o episódio do Chile", descreve Rocha.

Para justificar seu apoio aos chilenos na polêmica sobre a partida, Havelange chegou ainda a ler uma nota de repúdio contra a tentativa da URSS de tentar "politizar o futebol".

Na prática, o episódio serviu para tornar a União Soviética neutra na eleição para a presidência da Fifa, pelo menos no primeiro turno. "Quando a eleição de Havelange parecia encaminhada, os russos alteraram seu voto e apoiaram o brasileiro", completou Rocha.