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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Brasil é escolhido para negociar tratado sobre pandemia na OMS

Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde) - Fabrice COFFRINI / POOL / AFP
Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde) Imagem: Fabrice COFFRINI / POOL / AFP

Colunista do UOL

02/02/2022 16h54

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Brasil foi escolhido para formar parte do órgão restrito de países com a missão de negociar um tratado internacional sobre pandemias. A iniciativa, que irá mobilizar as chancelarias por anos, é considerada como o projeto diplomático mais importante na construção de um sistema mundial pós-covid-19.

Se sob a gestão de Ernesto Araújo no Itamaraty o Brasil sequer fez parte do evento que lançou o projeto de um tratado, em 2021, o governo brasileiro agora busca um lugar de protagonismo no processo de negociação.

A escolha do Brasil ocorreu por consenso nas Américas, enquanto candidaturas de Chile e Canadá foram preteridas. Se a atual gestão de Jair Bolsonaro pesa contra o Brasil no fórum internacional, a perspectiva internacional de que seu governo está chegando ao fim e a experiência do Itamaraty em construir pontes entre diferentes grupos de países acabaram convencendo a região a dar seu apoio ao Brasil.

A ideia da OMS é que o mundo não pode simplesmente virar a página da pandemia, sem antes estabelecer um tratado que permita criar regras entre países. A meta é que, em uma eventual nova crise sanitária, os mesmos erros identificados em 2020 e 2021 sejam evitados, inclusive sobre a transparência de governos diante de surtos, a transferência de tecnologia e amostras de vírus.

"Se o mundo conta com tantos tratados internacionais sobre outros riscos, ele precisa ter um acordo sobre a pandemia", defendeu Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. O objetivo do novo acordo é estabelecer regras no mundo sobre como lidar com futuras crises sanitárias, com obrigações e direitos de países.

O tratado pandêmico terá de ser aprovado por todos os governos. Mas um grupo foi designado para que, nos próximos anos, comece a desenhar o que seria o novo instrumento internacional.

Além do Brasil, o órgão negociador contará com Egito, Japão, Holanda, África do Sul e Tailândia.

Do mesmo lado da China e EUA, Brasil resiste à ideia de dar maiores poderes para inspeções da OMS

Em alguns pontos do processo negociador, a postura brasileira coincide com potências que não querem a criação de um pacto internacional que permita que a OMS simplesmente entre em um país para vistoriar surtos.

De fato, no processo de debate sobre o tratado, o governo brasileiro resistiu e pediu esclarecimentos sobre propostas que poderiam significar um questionamento da soberania.

O governo brasileiro não é contra um acordo. Mas vê com preocupação algumas das bases sobre as quais a proposta está sendo construída.

A proposta sobre a mesa, hoje, é considerada como sendo delicada, tanto em termos geopolíticos como econômicos. Para alguns governos, como o do Brasil, o conceito de uma suposta responsabilidade por proteger a saúde da população esbarra num flerte ao questionamento da própria soberania.

Um dos elementos de maior discórdia vem da ideia apresentada pela OMS e pela União Europeia sobre a necessidade de criar uma espécie de direito à inspeção, sempre que um surto aparecer.
Os emergentes, porém, alertam que não existe clareza sobre quem estaria sob comando dessa inspeção e sob qual mandato.

O temor é que, sendo países tropicais, esses locais sejam mais frequentemente alvos de pressões por missões de inspeção, justamente pela existência de diferentes surtos.

Missões internacionais, portanto, poderiam significar também o questionamento da segurança de algumas dessas áreas e a declaração de zonas de interesse internacional. No Brasil, esse cenário é considerado como uma ameaça contra a soberania.

Além da inspeção, uma das propostas fala na criação de pontos focais da OMS dentro de cada um dos países, com total independência para agir. A proposta também enfrenta resistência dentro do governo brasileiro.

Mas esse não é o único ponto de discórdia. Um dos principais elementos de impasse se refere ao compartilhamento de amostras biológicas.

Pela proposta da UE, essa transparência e trocas de dados deveriam ocorrer de forma automática e sem contrapartida. Países que descubram um vírus devem, imediatamente, tornar uma amostra do elemento acessível a qualquer outro governo.

Mas, para os emergentes, existe um desequilíbrio se tal compartilhamento não for acompanhado por uma garantia de que essas economias terão acesso a tecnologias, vacinas, tratamento e equipamentos de diagnóstico desenvolvidos a partir do acesso ao material biológico.

A queixa é a de que, depois de dar acesso às amostras, os emergentes teriam de pagar para aqueles que receberam de forma gratuita a base de uma inovação.

Para os países em desenvolvimento, a ausência de um debate ainda sobre patentes e acesso a remédios e vacinas também dificulta a criação de um novo tratado que seja considerado como equilibrado.

O impasse, porém, tem gerado a insatisfação de certos grupos, inclusive dentro da OMS. A pressão por um pacto, porém, é grande. Há poucas semanas, num comunicado, mais de 30 países insistiram sobre a necessidade de fechar um acordo.

"Um tratado, convenção ou acordo legalmente vinculante, sob os auspícios da OMS, tem o potencial de fornecer ao mundo uma estrutura ambiciosa para melhor prevenir, preparar e responder a futuras pandemias e epidemias", alegou o grupo, liderado pela Europa.

"Um novo instrumento internacional deve quebrar o ciclo de "pânico e negligência" e elevar a atenção política de alto nível para preparação e resposta a pandemias", disse o bloco que ainda inclui países como Chile, Costa Rica, Quênia, Coreia, Ruanda, Reino Unido, Tailândia, Tunísia e Turquia.

"Um novo tratado deve reunir sistematicamente os signatários, impulsionando e apoiando um cumprimento mais forte através de um processo de revisão regular, e assegurando que a preparação e resposta para pandemias continue sendo uma característica regular nas agendas dos líderes mundiais", eles insistem.

As copresidentes do painel criado para avaliar a resposta internacional à pandemia emitiram uma declaração com um tom semelhante. Elas advertiram que "a necessidade de reformas é urgente", e pediram aos países "que trabalhem com o propósito de obter resultados reais que protejam as pessoas".

"O que é necessário agora é que os países deem um empurrão final para que a oportunidade de criar um mundo mais seguro não nos escape por entre os dedos", disse uma das líderes do processo, a ex primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark.

"Perguntamos: se esta pandemia representando uma ameaça para a saúde e o bem-estar da humanidade no mundo inteiro não pode catalisar uma mudança real, o que irá?", completou.