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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Queiroga transforma OMS em palanque, omite mortes e diz combater corrupção

Ministro da Saúde Marcelo Queiroga ao lado de Bolsonaro - Alan Santos/PR
Ministro da Saúde Marcelo Queiroga ao lado de Bolsonaro Imagem: Alan Santos/PR

Colunista do UOL

23/05/2022 07h01

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Num discurso transformado em propaganda eleitoral na manhã de hoje na Assembleia Mundial da Saúde, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, omitiu o número de mortos pela covid-19 no Brasil, festejou os resultados da política de combate à pandemia e declarou que uma das prioridades do governo de Jair Bolsonaro foi lutar contra a corrupção no seu setor.

Queiroga, como se não estivesse na sede da ONU, ignorou todos os principais temas da agenda internacional, como a negociação de um novo tratado global contra pandemias, não citou a reforma da OMS (Organização Mundial da Saúde), o debate sobre o regulamento sanitário internacional e não tocou no tema da guerra na Ucrânia.

A fala em Genebra do representante do governo de Jair Bolsonaro tampouco fez referências ao fato de que a principal mensagem atual da OMS é de que a pandemia não apenas não terminou, mas que os números voltaram a crescer em 70 países do mundo. "A crise está longe de terminar", afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, minutos antes da fala do brasileiro e usando exatamente o mesmo pódio.

Com o segundo maior número de mortes do mundo desde o começo da pandemia e se aproximando de 670 mil vítimas, o Brasil participa nesta semana da principal reunião da OMS, em Genebra. Queiroga desembarcou com a função de tentar desfazer a imagem de representar um governo negacionista. O encontro ainda ocorre no momento em que o governo estabelece o fim da emergência no país, coincidindo com o início do processo eleitoral.

Mas, num tom triunfalista, Queiroga optou por usar o palco internacional por anunciar, sem citar os elevados números absolutos, o fato de o Brasil ter "reduzido em 90% os óbitos pela covid-19 no último ano".

Palanque e aborto

Ao tomar a palavra, o chefe da pasta da Saúde permeou sua fala com alguns dos principais pontos das campanhas eleitorais de Bolsonaro e seus aliados. Ele, por exemplo, insistiu em reforçar a tese do governo de que o Brasil "defende, de forma intransigente, a vida desde sua concepção", numa oposição às propostas pela OMS para descriminalizar o aborto.

O ministro ainda insistiu em reforçar o tema da soberania dos estados, deixando claro que não é um adepto apenas de um sistema multilateral.

Ele, porém, concentrou seu discurso numa defesa da gestão do presidente diante da pandemia, sugerindo que o foco amplamente questionado em todo o mundo deu resultados.

"Desde o início da pandemia de COVID-19, o governo do presidente Jair Bolsonaro atuou para preservar vidas, conciliando oequilíbrio econômico e a justiça social", disse.

Queiroga, apesar das denúncias apresentadas na CPI da Covid, insistiu que uma das prioridades do governo tem sido a de lutar contra a corrupção no sistema de saúde. "Ao tempo que, combatemos a corrupção que retira oportunidades dos cidadãos acessarem o sistema de saúde, impedindo a realização de políticas públicas essenciais", afirmou.

O ministro ainda destacou os US$ 110 bilhões investidos no SUS e, segundo ele, essa decisão permitiu triplicar o monitoramento de doença e cuidados primários. Para ele, é essa a forma de lidar com futuras pandemias, fortalecendo os sistemas nacionais de saúde.

"O Brasil tem um dos maiores serviços universais de saúde do mundo", declarou o ministro, que discursou em português e com uma tradução simultânea.

Ignorou Covax e comprou cloroquina, mas agora anuncia doações e "celebra a ciência"

Aos governos de todo o mundo, Queiroga ainda ignorou o fato de o Brasil ter esnobado o consórcio de vacinas por meses —a Covax— e de ter protelado negociações com farmacêuticas para comprar imunizantes. Em seu discurso, ele preferiu apenas indicar que o país adquiriu 650 milhões de vacinas e que mais de 80% da população completaram vacinação.

Depois das críticas de Bolsonaro contra as vacinas e apesar de o presidente não ter sido oficialmente vacinado, Queiroga agora optou por dizer na OMS que esse era um "instrumento importante" e que o Brasil tem doses asseguradas para sua população.

Queiroga também usou o discurso para defender o "acesso justo" de países às vacinas. Mas não citou o fato de que, por meses, o Brasil foi o único país em desenvolvimento que rejeitava a possibilidade de negociar a suspensão de patentes de imunizantes, uma postura que apenas os países ricos defendiam.

Segundo ele, o governo fez doações de 5,6 milhões de doses e mais US$ 86 milhões aos esforços da OMS para aumentar a cobertura de vacinas no mundo.

O ministro ainda defendeu a expansão da produção nacional de vacinas e a transferência de tecnologia, diante das flexibilidades possíveis nas patentes.

Ao contrário do que foi o governo Bolsonaro durante os dois anos da pandemia e da defesa oficial de remédios que não funcionavam, Queiroga afirmou que "celebrava os avanços da ciência e da tecnologia" que permitiu ter tratamentos e vacinas.

Queiroga ainda ensaiou uma crítica aos lucros das empresas farmacêuticas e insistiu que vacinas mais eficientes e tratamentos precisam ser ainda desenvolvidas. "É imperativo que tenhamos, em curto prazo, vacinas ainda mais seguras, eficazes, e custo-efetivas que garantam mais proteção diante de novas variantes do vírus", completou.

Apesar de repetidos pedidos feitos pela coluna, a agenda do ministro na Suíça não foi divulgada. Ela tampouco consta do site do governo.

"Pandemia está longe de terminar", disse Tedros

O tom dado pelo diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, foi bem diferente do ufanismo de Queiroga. Segundo ele, o "mundo não estava e continua não estando preparado" para lidar com uma emergência. E ele ainda alertou: "a pandemia está longe de terminar".

Ao falar aos ministros, ele ainda destacou como a crise sanitária desfez avanços em dezenas de outras áreas e colocou 2 bilhões de pessoas em uma situação de crise econômica para poder pagar por serviços de saúde.

Um dia antes, criticando a desinformação, algo que foi amplamente usado pelo governo Bolsonaro, Tedros deixou claro que a pandemia não terminou. "Ela não vai desaparecer de forma mágica", disse.

"Em muitos países, as restrições foram retiradas e a vida parece como antes. A pandemia acabou? Não. Certamente não terminou", disse.

"Não era a mensagem que vocês queriam ouvir. Mas não o que eu queria dizer. Mas é a realidade", afirmou Tedros aos ministros de todo o mundo.
Segundo ele, houve progresso e a vacinação chega a 60% da população mundial. Mas apenas 57% dos países conseguiram superar a marca de 70% de suas populações imunizadas.

Tedros destacou que mais de 70 países registram um aumento de casos nas últimas semanas. "A pandemia não terminará enquanto não estiver terminada em todo o mundo", disse. "O vírus nos surpreendeu e ainda não podemos prever seu passo ou intensidade", completou.