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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mordaça: Jogadores da Alemanha entram para história do esporte

Colunista do UOL

23/11/2022 10h25

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Num gesto simples e poderoso, os jogadores da Alemanha entraram nesta quarta-feira para a história do esporte. Ao cobrirem suas bocas no momento de fazer a foto oficial da estreia na Copa do Mundo, o time tetracampeão driblou de maneira inteligente a mordaça imposta pelos organizadores sobre o uso de braçadeiras em defesa do movimento LGBT.

Durante a atual Copa, certas brechas foram permitidas para que torcedores pudessem fazer gestos políticos. Mas sempre de maneira controlada e com fronteiras bem estabelecidas. Quem cruza essa linha é imediatamente silenciado.

Ao longo dos anos, vimos como o monopólio do uso político do esporte está nas mãos dos políticos e de seus dirigentes cúmplices. Aos demais, a lei estabelece a mordaça, um ato político.

Com o argumento de se evitar a política no esporte, instituições e suas leis garantem que apenas quem está no poder possa politizar o esporte, o torcedor e a emoção.

De forma consciente ou não, quem defende que atletas e torcedores não se manifestem politicamente está simplesmente prestando um enorme serviço para perpetuar essa manipulação. E sufocar qualquer grito de cidadania. Quando um atleta se cala, portanto, o que está em jogo é a liberdade.

Ao longo da história, foram vários os exemplos dessa situação. Stalin, por exemplo, tinha medo do Spartak. Ele sabia que, naquelas arquibancadas, o grito não era apenas de gol. Os nazistas, anos depois, temeram o Dínamo Kiev. Eles sabiam que uma vitória não era apenas por um troféu.

Nos anos 50, os argelinos formaram uma seleção clandestina. Os franceses tentaram impedir a fuga dos jogadores que se uniram ao time. Não temiam serem derrotados em campo. Mas nas trincheiras.

Em jogo, em todos esses casos, estava a liberdade.

Em 1978, em plena ditadura argentina, o general Videla iria cumprir uma tradição da histórica das Copas. Receberia os finalistas: o time de casa e os holandeses. Os anfitriões não tiveram escolha e estavam la. Já os europeus optaram por não aparecer, num ato político de protesto. Joseph Blatter me conta que Videla ficou furioso e João Havelange, ofendido diante da postura do time europeu, decidiu que tais encontros não deveriam mais ocorrer para não criar saia justa aos ditadores.

Hipócrita, o futebol martela desde então que esporte e política não se misturam, enquanto regras proliferam limitando o espaço cívico para fora dos estádios. A ideia ganhou outros esportes e foi importada pelo COI aos seus eventos. Mas, curiosamente, essa é uma regra que vale apenas para dois grupos: esportistas e torcedores. Para os políticos e dirigentes esportivos, as leis são solenemente pisoteadas.

Havelange continuou visitando ditadores africanos, sendo recebido por Pinochet, regimes autoritários no Oriente Médio.

Ele não foi o único. A CBF não viu qualquer problema quando alugou a seleção em 2010 para que Robert Mugabe aparecesse em todos os jornais do país ao lado de Kaká. No mundo olímpico, a repressão chinesa jamais preocupou o COI em 2008. Ou em Sochi em 2014.

Os Jogos Europeus em Minsk em 2019 pareciam ignorar Aleksandr Lukashenko. Tampouco parecia ser um problema que Ilham Heydar Aliyev, presidente do Azerbaijão, fosse também o presidente do Comitê Olímpico de seu país, uma "tradição" em diversos outros países onde sobra propaganda e falta democracia.

Não se pode fazer um gesto de defesa dos direitos humanos durante um evento esportivo. Mas se permite que aquele mesmo torneio seja manipulado para abafar crimes e abusos.

Não se permite levantar o uniforme para mostrar uma mensagem de apoio à democracia ou ao movimento LGBT. Mas se premia regimes autoritários no Qatar e em tantos outros lugares com a concessão de direitos de sediar grandes eventos.

Por alguns dias, aqueles líderes ilegítimos ganham uma chancela de legitimidade, entregam medalhas e sorriem para o mundo. Ou seria um deboche?

Assista o vídeo especial 'A convite do Qatar: a visão feminina sobre as restrições no país da Copa':