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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Temos de descolonizar o conceito de genocídio

Foto do Manifesto Indígena 2020, de Sebastião Salgado - Reprodução/Instagram
Foto do Manifesto Indígena 2020, de Sebastião Salgado Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

01/02/2023 04h00

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Um rio chora, uma árvore sente dor e uma lua sorri. Na cosmologia de muitos povos tradicionais, a existência de um ser humano depende de seu meio, tanto quanto da capacidade de seus pulmões de respirar.

Por essa forma de consciência, o que então seria um genocídio?

Pela definição aceita no direito internacional, o crime pode ser designado quando há uma tentativa deliberada e a intenção de destruir por completo ou de forma parcial um povo.

Mas não seria essa uma definição típica de um colonizador? Um povo precisa ser aniquilado fisicamente para que ele deixe de existir?

Quando não há fronteira entre a terra e o corpo na visão de povos tradicionais, o próprio significado de sobrevivência é outro. A terra não é de onde saem os recursos para a sobrevivência. Ela é a existência, tanto quanto o coração. Envenenar um rio com mercúrio do garimpo é contaminar o fluxo sanguíneo.

Assim, a morte de um povo é também social quando sua teia de relações deixa de existir, inclusive com os seres não humanos. Foram essas relações que definiriam aquela cultura. Definem a relação entre gerações e desenham sua história.

Pertencer não é apenas uma dimensão ligada ao idioma que se fala, ao deus para o qual fazemos nossas homenagens ou a conexão estabelecida no grito conjunto do gol. Pertencer é existir nesse contexto de relações com o meio ambiente.

Neste sentido, então, é urgente considerar a destruição dos rios, animais e árvores como parte de um genocídio.

Uma das ofensivas diplomáticas em Haia é a de tentar qualificar tais crimes como ecocídio. Mas, uma vez mais, o arcabouço ocidental e cartesiano de pensamento posiciona os seres humanos de forma hierárquica acima da natureza.

Teriam aqueles indígenas do povo yanomami morrido de fome se, antes, não tivesse acontecido uma ruptura da relação entre seus corpos humanos e terrestres?

Jair Bolsonaro, ao usar a máquina do estado para promover tal destruição dessa rede de relações, queria um Brasil sem indígenas. Não necessariamente sem os indivíduos. Mas sem um povo.

Sua ação e suas consequências, hoje, nos obrigam a repensar o conceito de crime no século 21 e assumir uma nova definição do genocídio. Desta vez, descolonizado.