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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta ao deputado transfóbico: você não tem lugar numa democracia

Bandeira trans - Getty Images/iStockphoto
Bandeira trans Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

12/03/2023 04h00

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Deputado,

Conhecemos tua tática. Há umas décadas, vimos como um também jovem deputado intempestivo dilacerava o conceito de humanismo. Quase 30 anos depois e sem ter proposto no Parlamento nada que fosse digno de notícia, ele viraria presidente de uma das maiores economias do mundo. Com o mesmo discurso. E nada foi feito.

Não podemos tolerar que, uma vez mais, um cargo eletivo seja transformado em palanque da barbárie. Já vivemos isso uma vez e, diante da conivência de parte da sociedade e do silêncio da Justiça, descobrimos a destruição que vem daqueles que instrumentalizam o ódio.

Teus votos, deputado, não são folhas de um cheque em branco assinadas pelos contribuintes para que você difunda a violência. Tua legitimidade não se limita às urnas. Não é assim que funciona uma República. A liberdade de expressão tem seus limites e a democracia, para sobreviver, não pode admitir vozes como a tua.

Você optou por usar a tribuna do Congresso Nacional para zombar de uma parcela da população que, todos os dias, morre por ser quem é. São atos violentos de transfobia como esses que, depois, são repetidos por grupos na sociedade, num clima de impunidade.

Por isso, deixar teu atentado contra a democracia impune é repetir os erros que conduziram racistas, autoritários e charlatães ao poder.

Como se estivesse na Idade Média, você sugeriu que mulheres devem voltar ao lugar que os homens designaram para elas na sociedade. Com que direito?

Há poucos dias a ONU anunciou que, no atual ritmo de redução das disparidades entre homens e mulheres, precisaremos de 300 anos para garantir uma igualdade de gênero no mundo. Nos Parlamentos, a paridade seria atingida em 80 anos. Ou seja, no século 22.

Sabemos que tua ousadia em subir na tribuna no Dia Internacional pela Luta dos Direitos das Mulheres revela que não há acidente nesta fala criminosa. Você queria os holofotes. Mas não lhe darei esse prazer. Não vou repetir ou ecoar as frases ditas por você. Sequer mencionarei teu nome ou usaremos tuas imagens. A Justiça se ocupará disso.

Escrevo apenas para deixar claro que tal comportamento não tem lugar numa democracia e que, como pai de dois meninos, me dedico a mostrar como teu discurso, sem fantasia, é exemplo do medo, não de valentia. Uma ilustração de um "covarde da coragem", como diria o poeta.

Tento mostrar às duas crianças em casa que, sendo homens, brancos e com poder aquisitivo, eles têm a obrigação de usar esses privilégios para lutar contra todas as injustiças e denunciar as discriminações. Todas.

Ao ouvir você bradar como as mulheres devem viver, lembrei-me da campanha em um plebiscito para que as suíças finalmente pudessem votar, nos anos 1970 do século 20. O campo dos políticos que sugeriam que tal iniciativa não fosse aprovada colocou cartazes com a palavra "não" nas ruas das principais cidades. Neles, apelavam aos homens a votar contra a lei e para que suas esposas e filhas continuassem sem voz nas decisões políticas do país.

Sabe o que diziam os cartazes? Que a decisão de permitir que mulheres participassem da vida pública tiraria sua feminilidade e desestruturaria a sociedade. Num dos cartazes da campanha contrária ao sufrágio feminino, a mensagem trazia um bebê caindo do berço enquanto a mãe ia votar.

Fui ler quem produzia o material e descobri que era bancado por uma entidade intitulada "Defesa da Família e das Liberdades Populares". Confesso que me deu calafrios lembrar que, durante quatro anos, foi com o suposto discurso de proteção da família e da liberdade que o indecente governo Bolsonaro minou o direito das mulheres e impulsionou na sociedade o machismo, a violência e a intolerância.

Sei que vocês não estão sozinhos e, por isso mesmo, representam uma ameaça real aos avanços dos direitos das mulheres. Há poucos anos, estive em Budapeste para um evento no qual o governo local de extrema direita criava uma espécie de aliança entre movimentos ultraconservadores no mundo para defender uma agenda que tivesse como objetivo desmontar as reivindicações de mulheres e movimentos LGBTQIA+. Teus colegas estavam presentes, assim como diplomatas brasileiros que, misteriosamente, sobrevivem na atual gestão em cargos de liderança em temas de direitos humanos.

No final, algumas mulheres seriam homenageadas pelos organizadores, que pediam que subissem ao palco. Ao ler o "currículo" de cada uma delas, o apresentador concluía listando o auge dos feitos das homenageadas: o número de filhos que aquela pessoa tinha dado para a Hungria. E, quanto mais filhos, mais ruidosos eram os aplausos da sala repleta de reacionários. Quatro, cinco, seis?

A grande vantagem para nós é que, a partir de agora, você não precisa mais se passar por um defensor da família, dos bons costumes e da ordem para que saibamos o que está em jogo.

Quando você colocou a peruca, você não se fantasiou de trans. Jamais teria dignidade para isso.

Foi tua máscara que caiu. Por baixo do terno, descobrimos os traços mais rudes da misoginia e as feridas abertas de um patriarcado decadente que, desesperado e desamparado moralmente, ainda luta com suas últimas forças para tentar sobreviver.

Se depender de mim e dos meus dois filhos, vocês não conseguirão.

Saudações democráticas,

Jamil Chade

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