Criação de dois Estados não é mais possível, diz especialista em Palestina
Criar dois Estados que possam conviver em paz e com fronteiras reconhecidas já não é mais possível entre israelenses e palestinos. Quem faz a constatação é Riccardo Bocco, um dos principais especialistas na questão palestina e que, nos bastidores, estava trabalhado para construir uma opção de entendimentos entre os dois lados, como o estabelecimento de uma confederação.
Bocco foi chamado em 2021 e 2022 para propor reforma profunda na maneira como a ONU atua com os refugiados palestinos e é considerado como uma das referências mundiais na busca por dar uma resposta à crise. Hoje, porém, ele considera que a guerra em Gaza enterrou a proposta de que israelenses e palestinos tenham seus respectivos Estados, reconhecidos internacionalmente e que possam conviver em segurança.
O italiano Riccardo Bocco é professor emérito do Graduate Institute, em Genebra, e por 40 anos desenvolveu seu trabalho no Oriente Médio.
Governos de diferentes partes do mundo e a própria ONU insistem que apenas o estabelecimento de dois Estados pode dar uma saída política para o conflito. Mas, para Bocco, essa é uma opção cada vez mais distante.
"Se olharmos o mapa, onde está o Estado palestino? Não existe Estado palestino", lamenta.
Eis os principais trechos da entrevista:
Chade: As agências humanitárias estão nas manchetes dos noticiários do mundo todo. O que Gaza está nos mostrando sobre elas?
Bocco: A ONU e as ONGs humanitárias, hoje, não podem fazer entregas por causa de Israel, que não permite que elas entrem. Vemos, pela história dos caminhões que estão na fila, que eles têm acesso muito limitado para levar ajuda humanitária a Gaza. A ONU poderia desempenhar outro papel.
Depois do dia 7 de outubro, Israel disse que erradicaria o Hamas, entraria em Gaza e acabaria com os terroristas. Por três semanas, eles não entraram. Começaram a entrar em Gaza de forma mais incisiva agora. Por que estão fazendo isso? O que sabemos é que o bombardeio de Gaza tem sido muito pesado, o que significa que eles estão tentando eliminar a infraestrutura civil. É claro que eles disseram que mataram terroristas e oficiais do Hamas. Mas a estratégia deles, no primeiro nível, é provocar o caos aterrorizando a população civil palestina. E eles estão combinando essa estratégia com a decisão de não permitir a entrada de ajuda humanitária.
Por quê?
Vários think tanks israelenses previram a possibilidade de uma limpeza étnica de Gaza e o deslocamento forçado em massa para o Egito. Isso é o que está acontecendo diante de nossos olhos. Há uma semana, em quatro lugares diferentes onde a UNRWA está fornecendo ajuda humanitária, a população chegou lá, entrou nos depósitos e pegou tudo o que podia, de farinha a água. A população palestina está realmente desesperada.
Estamos chegando a um estágio em que, em algum momento, eu não ficaria surpreso se eles rompessem as cercas ao redor de Rafah e tentassem entrar no Egito. É uma questão de vida ou morte. Se Israel os está matando, isso não é apenas um crime de guerra, mas também um crime contra a humanidade.
Então, o que essas agências devem fazer?
A única maneira é se levantar. Essa é a única chance que elas têm. Esse é o dever delas, como organizações humanitárias. Seu dever é atender às pessoas em situações terríveis, de acordo com o direito humanitário internacional. Se Israel não permitir o acesso à população em sofrimento, isso já é, por si só, uma violação grave do direito internacional e um crime de guerra. Mas eles precisam se manifestar. Eles precisam se levantar. Isso é o que deve ser feito.
Mas o que vemos é que esta situação não se limita apenas a Israel. Qual é a responsabilidade dos outros Estados membros do Conselho de Segurança?
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberEles são realmente cúmplices dos crimes de guerra. Definitivamente. Os EUA estão fechando os olhos para o que está acontecendo. Eles têm se oposto a uma trégua. Eles só falam em uma pausa humanitária e em um corredor. O que os EUA estão dizendo indiretamente é: "alimente-os e mate-os". E a França e o Reino Unido são incapazes de falar sobre isso. O Conselho de Segurança é responsável por isso. Quando observamos os resultados da votação, na semana passada, foi terrível. Hoje, Israel está acusando a OMS e a Unicef de apoiar os terroristas, porque eles se manifestaram contra as políticas de Israel em relação ao terror. E ninguém se atreve a mandá-los ficar quietos.
Estamos vendo a morte da solução de dois Estados?
A solução de dois Estados não é mais possível. Se olharmos o mapa, onde está o Estado palestino? Não existe Estado palestino. Estou trabalhando em colaboração com representantes da sociedade civil israelense e palestina em três cenários. Um deles é uma confederação. Criamos um grupo de trabalho e teremos uma reunião sobre isso em Genebra no próximo ano. Mas essa é a única possibilidade, trazida pelas organizações da sociedade civil.
Por que você diz que a solução de dois Estados não é mais possível?
Como Israel poderia desalojar 700 mil colonos na Cisjordânia? Você pode sonhar. Quando eles tentaram fazer isso com 9 mil colonos em 2005 em Gaza, todos nós nos lembramos do que aconteceu.
A responsabilidade de proteger os palestinos deve ser da ONU?
A ONU não é uma organização independente. Ela é paga pelos Estados membros e há um Conselho de Segurança que decide o que pode ser feito e o que não pode ser feito. Portanto, a única coisa que a ONU pode fazer é lembrar ao Conselho de Segurança o que eles assinaram, a lei internacional humanitária e as quatro Convenções de Genebra. Esse é o único ponto que eles podem usar como vantagem para se opor ao que está acontecendo.
Eles não têm um exército. Eles têm um papel moral: a responsabilidade pelo que está acontecendo é dos Estados membros da ONU e dos membros do Conselho de Segurança.
Quão perigosa é essa situação para a região?
A região está em ebulição por causa dos protestos da população civil nas ruas, e os governos autocráticos dos regimes árabes terão de lidar com isso. Ninguém quer entrar em guerra contra Israel. Eles não têm os meios. Quem poderia atacar Israel? Egito, Jordânia, Líbano, Síria, Iraque... Ninguém pode realizar uma ação militar contra Israel hoje, inclusive por causa do apoio dos EUA.
Mas quando a operação militar em Gaza terminar, há um grande risco de implosão da sociedade israelense. A sociedade e o governo palestinos já implodiram. Agora, a questão é o que vai acontecer em Israel.
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