Carta aos franceses: Merci, somos todos agora um pouco resistência
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Queridos amigos franceses,
Num ano repleto de eleições por todo o mundo, foi justamente um pleito inesperado — o de vocês no último domingo — que despertou a esperança em nós. Por alguns instantes, fomos todos um pouco parte da resistência francesa.
Não estava em jogo apenas o destino de seu país. Uma vitória da extrema direita na França seria um divisor de águas na história da luta democrática.
E você não decepcionaram.
Numa aula de democracia, mais de 220 candidatos abriram mão de suas campanhas para apoiar aquele que estivesse melhor colocado para enfrentar a extrema direita no segundo turno. Em nome da preservação do estado de direito, sacrificaram suas próprias carreiras e projetos.
Num exemplo de resistência, vocês ocuparam as ruas e coretos, seus jogadores ousaram se posicionar sem medo de perder um patrocinador. Seus artistas assumiram seus respectivos papeis de arautos da liberdade e tanto a direita liberal quanto a esquerda anticapitalista se deram as mãos contra a perspectiva de uma nova sombra sobre o continente europeu.
Numa lição de convicção, vocês nos mostraram que não há motivo para abandonar suas convicções progressistas. Assumiram quem são e o que defendem.
O resultado foi a derrota daqueles que vendiam a ideia de uma volta ao passado idealizado. Uma extrema direita que recorre à ideia do declínio do Ocidente como justificativa para impor sua visão de mundo e a supressão de direitos. Exatamente o mesmo argumento manipulado pelos nazistas a partir dos anos 20, na Alemanha.
Para esse segmento da sociedade, há um verdadeiro sentimento de pânico diante da constatação da perda de sua centralidade e de privilégios. Não são mais os mestres incontestáveis, os organizadores do mundo e autores inclusive dos mapas que nos guiam.
Como reação, tentam convencer a população a resgatar algo que simplesmente jamais existiu. Me pergunto: de qual passado falam? Daquele onde mulheres não votavam? Onde determinadas populações do mundo não tinham alma? Onde matar era justificado se o outro ser humano não rezava para o mesmo deus?
Vocês, em oposição a tudo isso, votaram pelo humanismo, pelo fim da história única, pelos direitos fundamentais.
Jardineiros da democracia, vocês transformaram em ação a tese de Lucie Aubrac, que insistia que a resistência deveria ser conjugada no presente. Como o amor, como fui ensinado recentemente.
A todos vocês, um profundo merci, repleto de esperança.
Hoje, somos todos um pouco franceses. Um pouco resistência.
Hoje, estamos unidos pela mesma luta contínua para frear a barbárie. Seja na Place de la Republique, na Avenida Paulista e em cada espaço cívico que pudermos ocupar.
Saudações democráticas.
Jamil Chade