Jamil Chade

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Reportagem

Trump é sinal de crise na democracia ocidental, diz ex-embaixador nos EUA

Uma eventual vitória do republicano Donald Trump nas eleições americanas, nesta semana, vai escancarar a crise das democracias do Ocidente. O alerta é do embaixador brasileiro Rubens Ricupero, que foi o representante do país em Washington e é considerado um dos nomes de mais destaque da diplomacia brasileira.

Em entrevista ao UOL, Ricupero avalia a eleição americana e constata que uma vitória de Trump significaria um "problema" para a política externa e para as exportações do Brasil.

Além de embaixador em Washington entre 1991 e 1993, Ricupero foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal (1993-1994) e ministro da Fazenda (1994). Também foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) entre 1995 e 2004.

Eis os principais trechos da entrevista:

Como o sr. avalia a possibilidade de uma vitória de Donald Trump nas eleições americanas?

Ricupero: A eleição em si é um sinal de como a democracia está em crise nos países ocidentais e, em especial, nos EUA. Embora tenhamos naturalizado a hipótese do Trump ser presidente, na verdade é um absurdo pensar que um homem desqualificado como ele possa ter sido presidente da nação mais poderosa do mundo e que volte agora com chance real de ser eleito. Isso é muito grave. Se isso ocorre nos EUA, imagine em outros lugares.

Trump nunca conseguiu dar o golpe que ele queria. Mas ele fez sempre um governo iliberal, ou seja, um governo eleito democraticamente, mas com espírito iliberal. E ele é isso, na questão de costumes, nas tendências autoritárias. Isso não é um problema restrito aos EUA. Se Trump tivesse sido apenas um presidente de um só mandato, você poderia dizer que é um ponto fora da curva. Mas se ele vencer de novo, temos de perguntar onde está a curva. Esse espírito iliberal sai muito fortalecido.

E o impacto político no Brasil?

Para o Brasil, seria uma hipótese muito negativa.

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Poderia haver um fortalecimento do bolsonarismo?

Sobre o impacto no bolsonarismo, eu devo dizer que eu não exageraria tanto. Na minha opinião, na eleição em dois anos no Brasil, a tendência natural é de que o pêndulo vá para uma posição mais conservadora. Não acredito que seja Jair Bolsonaro, por ele estar inelegível. Mas alguém como o governador de São Paulo ou Goiás.

O ciclo do PT já está exaurido. Lula ganhou, mas foi de raspão. E ganhou pelo apoio de pessoas como eu, que não são petistas e que votaram para evitar o Bolsonaro. O PT teve seu momento de ascensão, em 2002, mas o Brasil mudou muito desde então. Há o setor rural, que é muito poderoso e é conservador. Devemos ainda considerar os evangélicos, muito avessos às políticas assistencialistas. As pessoas querem mais um governo que pense em investimentos.

Apesar de o PT ser admirável por sua preocupação com os mais pobres, existem 50 milhões de pessoas no Brasil que recebem alguma espécie de ajuda do Estado, e só 45 milhões com carteira de trabalho. Não pode ter um país com base na assistência social. Embora a inflação esteja controlada e a economia dar sinais de crescimento de forma moderada, há uma normalidade medíocre. Medíocre por não ter investimentos.

Eu não coloco em termos de bolsonarismo, pois não acho que a ânsia da população seja por posições de extrema direita.

De que natureza seriam os impactos de Trump para o Brasil?

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Não tenho dúvida que a eleição do Trump complica as coisas. Lula se pronunciou a favor da outra candidata (Kamala Harris). Para completar, em 2025 o Brasil vai presidir o Brics, o que dará uma exposição ainda maior. Tudo isso vai complicar. Vai haver problemas.

No outro governo Trump, o Brasil tinha dado uma guinada para a direita. Estava com Michel Temer e depois Bolsonaro.

Bolsonaro tinha uma solidariedade com Trump, não com os americanos. Nos dois anos que os dois coincidiram nas respectivas presidências, apesar de o Brasil ter cedido em temas econômicos, os americanos deram cacete no Brasil, aplicando taxas no setor siderúrgico. Imagina com Lula? Se ele [Trump] for presidente, teremos problemas. Acho que sua presidência afetaria nossas exportações, em especial na siderurgia.

Claro, nossas exportações para os EUA não são da mesma dimensão do fluxo com a China, mas são importantes qualitativamente. A realidade é que, para o mundo todo, seria muito ruim [a eleição de Trump]. O único feliz seria Putin.

Isso vai exigir do Brasil uma reavaliação de sua política externa?

Ela já estava passando por isso. As pesquisas de opinião mostraram, há uns meses, uma queda na popularidade do Lula. E uma das questões foi sua declaração sobre Israel. Depois disso, houve uma reavaliação e foram mais cuidadosos. A deterioração com a Venezuela já tinha um indício claro que o Brasil havia mudado de postura. A postura da politica externa de Lula é manter o Brasil como um país do Sul Global e nunca tomar a iniciativa da ruptura. No fundo, a ruptura é uma derrota.

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O governo Lula fez uma aposta na Venezuela, com um acordo sobre a eleição. Apostou e perdeu. Portanto, já havia acontecido uma mudança. Foram mais cuidadosos, por conta da opinião pública.

Grande parte da política externa se explica por razões partidárias. Lula precisa dar alguma coisa para o PT. Já não deu a política econômica. Haddad é chamado de "o mais tucano entre os petistas". Como ele não dá ao PT o que é fundamental, ele dá alguma coisa.

De que maneira essa política externa difere dos dois primeiros mandatos de Lula?

A política externa era um acréscimo ao prestígio interno que ele tinha. Mas o mundo mudou. Até 2010, o mundo era mais simples que o de hoje. O grande problema entre China e EUA começa com Barack Obama e se acentua apenas com Trump em 2016. Rússia apenas começa sua tendência mais agressiva em 2014.

Lula voltou ao poder no momento que o mundo é mais difícil. Diante de um mundo cheio de conflitos, ele não tem sido feliz. As posições que tentou definir não foram boas. Eles está numa fase de baixar o perfil na diplomacia.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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