Jamil Chade

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Reportagem

Nobel da Paz terá sobrevivente de Hiroshima que imigrou ao Brasil

Aos prantos, a sobrevivente de Hiroshima Junko Watanabe conta a dor que sentiu nos anos após a bomba atômica que devastou sua cidade, ao final da Segunda Guerra Mundial. Nesta terça-feira, em Oslo, ela fará parte da delegação de 30 pessoas da entidade japonesa contra as armas nucleares e que foi escolhida para receber o prêmio Nobel da Paz de 2024.

O Nobel foi dado à organização japonesa Nihon Hidankyo, que luta pela abolição de armas nucleares. O movimento popular de sobreviventes da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, também conhecido como Hibakusha, foi indicado por seus esforços para "alcançar um mundo livre de armas nucleares e por demonstrar, por meio de testemunhos, que as armas nucleares nunca mais devem ser usadas".

Watanabe, a única brasileira do grupo e moradora da capital paulista, é considerada como um dos exemplos vivos da campanha por conscientizar as novas gerações sobre os riscos da bomba.

Ao UOL, um dia antes da cerimônia em Oslo, ela contou que tinha dois anos de idade quando a bomba explodiu. "No dia 6 de agosto de 1945, eu estava na porta de casa brincando com meu irmão mais velho e minha mãe. Todos contam que era um dia lindo, com céu azul", disse.

A casa da família da sobrevivente ficava 18 quilômetros do epicentro da explosão. Mas, nos instantes seguintes, sua rua foi tomada por "uma chuva negra, um vento quente". "Minha saúde ficou muito ruim. Meus pais pensaram que eu iria morrer. Fiquei dias e dias com diarreia e a comida não parava no meu corpo", disse.

Hoje com 82 anos, Watanabe conta que, nos anos seguintes, a vida da cidade foi "muito triste". "Não havia comida, estava tudo contaminado", afirmou. "Não pensávamos no que havia ocorrido. Tínhamos que pensar em sobreviver, trabalhar todos os dias", disse.

Outro aspecto, segundo ela, foi a impossibilidade de sair da região. "Não nos queriam, não queriam que saímos de lá. Havia muita discriminação contra quem estava em Hiroshima naquele dia, foi muito horrível. Sobrevivemos, mas não era nossa culpa. Nós éramos vítimas", disse.

A japonesa decidiu, com 24 anos, migrar ao Brasil. "Eu sempre pensava que, quando eu crescer, eu vou morar em outro país. Um dia, vi uma placa com o anúncio e meu coração bateu muito forte naquele momento. Decidi que queria ir. Fui estudar para saber que país era aquele. Mas eu queria sair dali", contou.

A família de Watanabe resistiu em permitir que ela fizesse a viagem. Mas com o namorado já tendo partido para o Brasil, ela o seguiria algum tempo depois. "Eu decidi casar com ela e, em 1967, iria imigrar. Foram 45 dias de navio sozinha até o porto de Santos, onde meu marido me esperava. Ali começou minha vida no Brasil", contou.

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Foi em São Paulo que ela acabaria se envolvendo com o trabalho dos sobreviventes da bomba atômica, num esforço para ajudar essas pessoas. Watanabe não tinha lembrança do que havia sido aquele dia da explosão de 1945. Mas conta que descobriu documentos com os depoimentos pessoais de quase 200 sobreviventes de Hiroshima, que estavam espalhados pela América do Sul. "Cada depoimento tinha quase 30 páginas, já estavam amareladas", relembrou.

Muitos deles hoje não estão mais vivos. Mas os relatos são considerados como parte da história da humanidade no século 20.

Sem conseguir conter as lágrimas, ela relatou trechos dos depoimentos. "Fiquei arrepiada quando li aqueles documentos. Foi ali que conheci realmente o que aquilo tudo queria dizer. Eram homens que tinham derretido, pessoas sem olhos, com as entranhas que saíam de seus corpos", disse. "Também descobri um documentário e, ao ver aquelas imagens, eu chorei e chorei", contou.

Prêmio é resposta ao retorno da ameaça nuclear

O prêmio é uma resposta à ameaça nuclear que paira sobre o mundo, diante da guerra na Ucrânia e da crise no Oriente Médio, mas também por conta da ofensiva tecnológica por parte de potências para incrementar o poder dessas armas. Em 2023, EUA, Rússia, China, França, Reino Unido e outros países destinaram US$ 91 bilhões para o desenvolvimento de novas armas nucleares.

O número de ogivas também sofreu um incremento, gerando um alerta global.

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Watanabe defende que o prêmio seja usado para insistir sobre a necessidade de uma abolição das armas.

"Temos de acabar com a bomba", pediu Watanabe. "Não podemos permitir que se use a arma e precisamos que haja uma proibição mundial do uso da bomba", insistiu a japonesa que migrou ao Brasil. "Todos os países precisam assumir esse compromisso. Hoje vemos a Rússia falando sobre a possibilidade. A potência de uma arma hoje seria muito maior que Hiroshima, o que significa que muita gente seria contaminada", disse.

"É urgente que o uso de armas nucleares volte a ser um tabu", disse o presidente do Comitê do Nobel, Jorgen Watne Frydnes. "As ameaças de usar (a bomba) devem acabar", insistiu.

Desde o início da guerra na Ucrânia, o governo de Vladimir Putin passou a citar a existência de seu arsenal nuclear, como uma ameaça ao Ocidente e uma tentativa de alertar a Otan para que evite qualquer envolvimento ainda maior na Ucrânia. No caso do Oriente Médio, o temor é de que a escalada da tensão também volte a abrir a possibilidade para que tais armas sejam consideradas.

O Comitê Norueguês do Nobel reconhece que nenhuma arma nuclear foi usada em guerra em quase 80 anos. Mas destacou que foi justamente os "esforços extraordinários da Nihon Hidankyo e de outros representantes dos Hibakusha que contribuíram muito para o estabelecimento do tabu nuclear".

"Hoje eu tenho medo que alguém volte a usar a bomba. A história de Hiroshima nunca mais pode ocorrer. Pedimos que nossa experiência seja ouvida. Muitos dos sobreviventes já tem mais de 83 anos e o mundo inteiro preciso ouvir. Nós sofremos até morrer e não podemos permitir que aquilo se repita", disse Watanabe.

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"Eu tenho uma neta e não quero que ela jamais viva o que eu vivi", completou a imigrante japonesa.

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