Jamil Chade

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Opinião

No dia internacional dos direitos humanos, a voz de Saramago ressoa

No dia 10 de dezembro de 1998, ao receber o prêmio Nobel de Literatura, o português José Saramago usou seu discurso para fazer um alerta:

As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrênica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante

Naquele dia, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completava 50 anos. Hoje, o discurso é mais atual do que nunca.

Na ONU, nesta terça-feira, o tom usado pelo secretário-geral António Guterres vai no mesmo sentido de alerta, quase 30 anos depois de o escritor português fazer sua advertência.

"No Dia dos Direitos Humanos, enfrentamos uma dura verdade: os direitos humanos estão sendo atacados", disse Guterres. "Dezenas de milhões de pessoas estão atoladas na pobreza, na fome, na saúde precária e em sistemas educacionais que ainda não se recuperaram totalmente da pandemia", afirmou.

Segundo ele, as desigualdades globais estão aumentando de forma desenfreada. "Os conflitos estão se intensificando. O direito internacional é deliberadamente ignorado. O autoritarismo está em marcha, enquanto o espaço cívico está diminuindo", insistiu.

Guterres destacou que a "retórica de ódio está alimentando a discriminação, a divisão e a violência total".

Para ele, o tema deste ano nos lembra que os direitos humanos têm a ver com a construção do futuro - agora mesmo.

"Todos os direitos humanos são indivisíveis. Seja econômico, social, cívico, cultural ou político, quando um direito é prejudicado, todos os direitos são prejudicados", defendeu.

Guterres ainda evocou a necessidade de que tenhamos o "dever" de defender todos os direitos - sempre. "Curar as divisões e construir a paz. Combater os flagelos da pobreza e da fome", disse. "Defender a democracia, as liberdades de imprensa e os direitos dos trabalhadores", insistiu.

Ao se completar o 76º aniversário da Declaração Universal de Direitos Humanos, a Fundação José Saramago associa-se à ONU, e a todas as instituições e pessoas que proclamam a necessidade de respeitar os direitos dos homens e mulheres, e do planeta, como única via de convivência.

Diante daquela realidade de 1998, Saramago antecipou de uma maneira explícita o que, hoje, Guterres sugere e propõe que, além de direitos, deveres sejam estabelecidos.

"O primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos", disse Saramago em Estocolmo, naquele dia de 1998. "Não é de esperar que os governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor", completou.

Sua voz continua a ressoar num mundo que vive uma encruzilhada. Anos depois, numa entrevista, Saramago alertaria que se as sociedades não se lançassem na defesa da democracia e dos direitos humanos, "o século será um desastre".

Ele estava certo.

Leia o discurso de Saramago em 1998, pronunciado no Banquete Nobel:

Majestades, Alteza Real, Senhoras e Senhores,

Cumpriram-se hoje exatamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal de Direitos Humanos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, com que rapidez a atenção se fatiga quando as circunstâncias lhe impõem que se aplique ao exame de questões sérias, não é arriscado prever que o interesse público por esta comece a diminuir a partir de amanhã. Claro que nada tenho contra atos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que pronuncie aqui umas quantas palavras mais.

Como declaração de princípios que é, a Declaração Universal de Direitos Humanos não cria obrigações legais aos Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidos serão interpretados de acordo com a Declaração. Todos sabemos, porém, que esse reconhecimento formal pode acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na ação política, na gestão econômica e na realidade social. A Declaração Universal é geralmente considerada pelos poderes econômicos e pelos poderes políticos, mesmo quando presumem de democráticos, como um documento cuja importância não vai muito além do grau de boa consciência que lhes proporcione.

Nestes cinquenta anos não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrênica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.

Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitem os que efetivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direitos Humanos, e com isso julgamos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de esperar que os Governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.

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Não estão esquecidos os agradecimentos. Em Frankfurt, onde estava no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que disse foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prêmio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos volto a agradecer. E agora quero também agradecer aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de agora: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam, portanto.

José Saramago

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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