Jamil Chade

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Opinião

O livro nosso de cada dia nos dai HOJE!

Dias atrás, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva telefonou para o escritor Itamar Vieira Júnior, autor de "Torto Arado", um dos mais premiados escritores da literatura brasileira contemporânea. Com um exemplar do livro sobre a mesa, Lula contou a Itamar que estava assinando a legalização dos quilombos de Lençóis, Getimana e Boa Vista, que inspiraram o espaço ficcional do romance. No tom de espontânea intimidade que lhe é peculiar, Lula brincou, pedindo que Itamar lhe mandasse o seu segundo livro ("Salvar o Fogo", 2023), que acaba de ganhar o Prêmio Jabuti).

O vídeo comoveu leitores e colegas de Itamar, e muita gente no mundo dos livros. Porque para quem vive de e para os livros no Brasil, é extraordinário ter um presidente da república que faz um gesto de claro apreço ao livro e à literatura. A primeira coisa que pensei foi: A literatura pode muito mais do que a gente supõe! Porque Lula disse: "Isso é o resultado do seu esforço, querido.", deixando no ar a ideia de que a ficção pode interferir no real e de ajudar a corrigir injustiças.

Mas, passado o embevecimento, fiquei me questionando se Lula sabe que o segundo livro do Itamar, como tantos outros livros importantes publicados no Brasil nos últimos anos, ainda não chegou aos alunos, aos professores, às escolas e bibliotecas públicas, porque os livros literários que são comprados pelo Governo Federal todos os anos não estão sendo entregues desde 2022!

O PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), na sua versão literária, foi assinado com dois anos de atraso (só em 2024) e mesmo assim, o cronograma de entrega segue acumulando atrasos. Entramos em dezembro e os livros contratados para serem distribuídos nas escolas em 2022, até agora não foram efetivamente entregues. E os PNLDs de 2023 e de 2024 seguem também atrasados, criando um efeito dominó que afetará os cronogramas de 2025 e de 2026.

Para piorar, o programa Minha Biblioteca, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que já é visto como o maior e mais importante do Brasil na esfera municipal, e que previa uma compra estimada em 10 milhões de exemplares, não foi efetivado pela primeira vez em anos. Porque o prefeito Ricardo Nunes não assinou o contrato dos livros já selecionados, que deveriam ter chegado aos alunos da rede no primeiro semestre de 2024.

Além dos alunos e professores, a situação está impactando terrivelmente as editoras brasileiras. Sobretudo, as independentes, que não dispõem de capital estrangeiro e nem de bancos particulares para financiar a produção de novos livros enquanto os recursos das vendas governamentais não entram. A cadeia do livro está de joelhos. É uma rede inteira de profissionais do livro afetada, já que muitas editoras tiveram que demitir colaboradores, adiar lançamentos e desistir de novos projetos, algumas sob o risco de quebrar, porque as compras governamentais representam um percentual importante no faturamento anual, e sem elas, a conta não fecha.

Tudo somado, os atrasos significam milhões de exemplares que deixaram de chegar aos leitores nos últimos dois anos, criando um intervalo muito longoem que os alunos ficaram sem o estímulo de livrosnovos para ler, o que, de certa forma, pode ser relacionado à perda de 11 milhões de leitores, detectada na última pesquisa Retratos da Leitura. Porque um leitor não existe sem um livro ao alcance da mão. Um leitor se faz no convívio diário com o livro, que deveria ser como o pão nosso de cada dia. E grande parte dos alunos das escolas públicas só tem acesso à literatura através da distribuição gratuita de livros, já que a maioria não tem dinheiro para comprar em livrarias.

O governo Lula tem feito um esforço louvável no sentido de melhorar a vida das pessoas mais pobres, ampliando e aperfeiçoando programas como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, para ficar só em dois exemplos. Na última Bienal do Livro de São Paulo, Lula assinou um documento garantindo que as vilas do Minha Casa Minha Vida terão bibliotecas, a partir de 2026. Mas a pergunta que não podemos calar é se até lá terá sido possível colocar em dia as entregas dos livros atrasados de todo o período (2022-2026), ou se chegaremos nesse futuro, e mesmo virando à esquerda, ainda estaremos correndo atrás dos livros e dos leitores perdidos.

Então fica aqui o apelo ao presidente Lula para que se sensibilize e intervenha o mais rápido possível, sobretudo para que seu governo não fique com a imagem de ser mais um a negar às crianças e aos jovens o direito à literatura, que como definiu Antonio Candido, também é um direto humano. Livro deveria fazer parte da cesta básica, e não faltar nunca na mesa dos brasileiros de todas as classes. Porque nem só de pão vive o homem, e quem tem fome de livro, também tem pressa.

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Simone Paulino é editora, escritora e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (Universidade de São Paulo)

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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