Jamil Chade

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Reportagem

'Não entra ninguém': fronteira se prepara para crise política e humanitária

Carlos não sabe mais se algum dia entrará nos EUA. Ele saiu da Guatemala, há oito meses, e sabia que precisava desembarcar na fronteira entre o México e os EUA antes da posse do governo de Donald Trump se quisesse ter alguma chance de cruzar o Rio Grande. "Não deu tempo", lamentou.

Carlos conseguiu chegar à cidade fronteiriça de Piedras Negras, no México, na semana passada. Mas não reuniu o dinheiro necessário para pagar os grupos controlados pelo crime organizado que, de forma clandestina, buscam caminhos perigosos entre os dois países para conduzir esses imigrantes.

Agora, ele assiste em silêncio à movimentação de militares ao outro lado do rio, na cidade americana de Eagle Pass. Instantes antes, Trump havia anunciado que uma das fronteiras mais militarizadas do mundo ganhará novas tropas. Além dos 2.500 homens já espalhados pelo local, outros 1.500 chegarão nos próximos dias. As ordens também determinaram que a fronteira sul seja "fechada".

Trump, de fato, havia prometido em sua campanha eleitoral que esse era seu plano. Não houve, portanto, estelionato eleitoral.

Assim, antes mesmo de terminar sua primeira semana no poder, a fronteira foi instrumentalizada para que Trump pudesse mostrar força. A partir de agora, refugiados terão mais dificuldades para fazer sua solicitação de asilo nos EUA, num gesto que preocupa até mesmo grupos civis americanos diante do que pode ser uma violação dos compromissos internacionais dos EUA. Na quarta-feira, centenas de refugiados que estavam prestes a embarcar em voos autorizados pelo governo americano foram informados que suas viagens estavam canceladas.

Os poucos metros entre o México e os EUA, para aqueles que estão tão perto, parecem ter ficado mais distantes.

Carlos, numa bicicleta emprestada, mostrou o albergue onde foi acolhido, numa igreja do lado mexicano. Ali, o sentimento era de desânimo. "Não estão deixando ninguém mais passar. Não entra mais ninguém", contou um salvadorenho, que pediu para não ter seu nome divulgado.

Um golpe duro para muitos estrangeiros foi o anúncio da anulação de seus agendamentos previstos com agentes americanos de imigração, já na própria segunda-feira. Por meio de um aplicativo criado pelo governo de Joe Biden, esses imigrantes podiam pedir uma audiência para expôr suas respectivas situações e, eventualmente, conseguir um visto ou um status de refugiado. Agora, eles não têm sequer com quem falar e o aplicativo saiu do ar.

Num esforço para mostrar lealdade a Trump, o governador do Texas, Greg Abbott, também já iniciou as obras para reforçar a fronteiras e colocar boias no meio do rio, na esperança de dificultar ainda mais a passagem dos estrangeiros. Ele conseguiu a aprovação de um orçamento de US$ 1,5 bilhão para ampliar ainda mais as barreiras.

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Oni K. Blair, diretor executivo da entidade de direitos cívicos ACLU do Texas, acusou o governador e seus aliados de agirem em violação às regras do próprio estado. Segundo ele, a lei federal de imigração alimenta o assédio e dá às autoridades estaduais a capacidade inconstitucional de deportar pessoas sem o devido processo legal, independentemente de serem elegíveis para buscar asilo ou outras proteções humanitárias.

Um agente da aduana mexicana confirmou ao UOL que o fechamento já é a realidade desde o começo desta semana, e que o rigor passou a ser ainda maior por parte dos policiais americanos.

"Vimos uma queda enorme do fluxo de pessoa", disse o mexicano. No momento que a reportagem atravessou a Ponte Internacional, que une os dois países, não havia ninguém cruzando.

"Nos últimos dias, observamos uma redução nas travessias ilegais de fronteira entre os portos de entrada. Desde terça-feira, as travessias ilegais de fronteira caíram para menos de mil em toda a fronteira sudoeste", disse o tenente Chris Olivarez, do Departamento de Segurança Pública do Texas. A queda, segundo ele, já é de 87% em comparação com o mesmo período do ano passado.

Para ele, as novas tropas vão operar câmeras e sensores. "Portanto, isso proporciona mais mão de obra", disse ele. "Quanto mais mão de obra você tiver, seja de policiais, seja de soldados, botas no chão é o que precisamos. E agora que temos mais olhos que podem realmente monitorar a fronteira, isso realmente nos ajudará a tentar nos concentrar nessas ameaças criminosas", disse.

México teme crise humanitária

Do lado mexicano, a prefeitura de Piedras Negras informou que começou a preparar armazéns para receber tanto os deportados pelos EUA como para ter onde abrigar os milhares de imigrantes que, sem poder cruzar, acabarão "presos" na cidade.

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Em Piedras Negras, no México, mural da 'amizade' é questionado pela população local
Em Piedras Negras, no México, mural da 'amizade' é questionado pela população local Imagem: Jamil Chade

Quatro fábricas que eram usadas por maquiladoras nos anos 90 estão sendo transformadas em abrigos. O temor é de uma crise humanitária numa cidade de 170 mil pessoas.

O governo mexicano também prometeu responder e já costurou uma aliança latino-americana para denunciar o que consideram como a "criminalização da imigração".

A presidente do México, Claudia Sheinbaum, também confirmou que já existe um plano para receber os deportados e que mais de 20 albergues em diferentes partes da fronteira estavam sendo preparados.

Já o governo de Nayarit, Miguel Ángel Navarro Quintero, apelou para o país não entrasse em um estado de "psicose coletiva".

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Nos albergues cada dia mais cheios na fronteira entre o México e os EUA, o pedido do governador também chegou tarde demais.

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