Jamil Chade

Jamil Chade

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Medidas de Trump levam 'pânico' a milhões em países mais pobres, diz ONU

Mulheres sem ajuda para partos, refugiados sem comida, fim do monitoramento de secas e pacientes de Aids sem tratamento. Pelo mundo, as decisões de Donald Trump de cortar recursos para a ajuda internacional e para a ONU jogam milhões de pessoas na incerteza e geram "pânico".

Ao completar 80 anos em 2025 e sem alternativas, a ONU agora inicia um processo para cortar custos e reformar sua administração, colocando em risco operações pelo mundo e levando entidades a promover demissões.

Nas agências especializadas das Nações Unidas, o desmonte já começou. A Organização Internacional de Migrações, por exemplo, indicou que irá promover a demissão de 3 mil de seus 22 mil funcionários.

A agência das Nações Unidas para a infância, Unicef, suspendeu ou reduziu programas de atendimento no Líbano, onde mais da metade das crianças com menos de dois anos não contam com alimentos em quantidades suficientes. "Fomos forçados a suspender, cortar ou reduzir drasticamente muitos de nossos programas, e isso inclui programas de nutrição", disse a representante da Unicef no Líbano, Ettie Higgins.

Na FAO, em Roma, a agência admitiu que programas de alimentação no Afeganistão e na África já foram suspensos, depois de Trump cortar US$ 300 milhões de seus repasses à organização. O impacto, segundo a entidade, será o aumento real da fome e da insegurança nessas regiões do mundo. A FAO instruiu seus funcionários a suspender programas e não fazer qualquer tipo de contratos que dependam de recursos americanos.

No Programa Mundial de Alimentação da ONU (PMA), os cortes resultaram já no fechamento do escritório da agência na África do Sul e a redução pela metade da alimentação entregue aos refugiados em Bangladesh.

De acordo com a entidade, sem novos recursos, a ração mensal para cada refugiado rohingya passará de US$ 12,5 por pessoa para apenas US$ 6,00.

"Todos os rohingyas recebem vouchers que são trocados por alimentos de sua escolha em varejistas designados nos campos. Para manter as rações alimentares completas, o programa precisa urgentemente de US$ 15 milhões para abril e US$ 81 milhões até o final de 2025", disse a entidade.

"A crise dos refugiados continua sendo uma das maiores e mais prolongadas do mundo", disse Dom Scalpelli, Diretor Nacional do PMA em Bangladesh. "Os refugiados rohingyas em Bangladesh continuam totalmente dependentes da assistência humanitária para sua sobrevivência. Qualquer redução na assistência alimentar os empurrará ainda mais para a fome e os forçará a recorrer a medidas desesperadas apenas para sobreviver", alertou.

Continua após a publicidade

Na semana passada, o governo Trump consolidou o fechamento de sua agência internacional de cooperação, a Usaid, com o corte de 83% dos programas e a demissão de 5,2 mil funcionários. O Secretário de Estado Marco Rubio disse na segunda-feira que os EUA estavam se afastando dos programas de ajuda multilateral que "não atendiam aos nossos principais interesses nacionais".

Em paralelo, a diplomacia dos EUA passou a votar contra qualquer projeto na ONU que tenha referência à diversidade, deixou a OMS e anunciou uma revisão de sua participação em todas as agências internacionais. No setor do clima, congelou os repasses para os fundos da ONU e deixou o Acordo de Paris.

A ruptura, sem qualquer tipo de calendário ou tempo para um ajuste, deixou milhares de pessoas pelo mundo sem atendimento.

Não apenas o dinheiro para o combate à fome desapareceu como os serviços para evitar as futuras crises começam a ser desmontados. A Rede de Sistemas de Alerta Antecipado contra a Fome, que monitora secas, a produção agrícola e os preços dos alimentos em mais de 30 países saiu do ar diante do fim dos repasses de Trump.

Pânico entre pacientes de Aids

O impacto também é sentido entre os pacientes de Aids. Segundo a Unaids, a agência das Nações Unidas, países que sofreram cortes de apoio dos EUA estão dando prioridade para a continuação da terapia antirretroviral para pacientes. "Apesar dessas medidas, houve relatos de pânico entre as pessoas que vivem com o HIV, que temem que seus governos e demais parceiros possam ter dificuldades para manter esses serviços e que ocorram rupturas de estoque", disse a agência, num levantamento.

Continua após a publicidade

Vários países relataram impactos significativos nos recursos humanos. Isso inclui 1,9 mil médicos e 1,2 mil enfermeiros no Quênia, além de 8,6 mil prestadores de serviços de saúde na Costa do Marfim. "A África do Sul informou que mais de 15.374 funcionários de resposta ao HIV a nível nacional e em 27 distritos prioritários foram afetados pelos cortes de financiamento dos EUA", apontou.

De acordo com o levantamento, os serviços de prevenção e teste de HIV para populações com alto risco de infecção foram duramente atingidos por cortes de financiamento. "Muitos centros de acolhimento financiados pelos EUA e outros espaços seguros para populações-chave altamente estigmatizadas e para meninas adolescentes e mulheres jovens foram fechados, e o financiamento dos EUA para o fornecimento de profilaxia pré-exposição a essas populações foi amplamente interrompido", lamentou a agência. O apoio dos EUA a programas de monitoramento foi congelado ou encerrado.

Na Libéria, o financiamento para sete entidades que prestam serviços a populações mais afetadas foi cancelado.

Em Botsuana, o fechamento abrupto de centros de acolhimento para pacientes e populações em risco interrompeu os serviços de teste de HIV e tratamento.

No Quênia, os serviços de prevenção do HIV para populações com alto risco de infecção pelo HIV, incluindo a profilaxia pré-exposição (PrEP), foram interrompidos. Todos os serviços comunitários financiados pelos EUA, incluindo centros de acolhimento, foram fechados.

No Peru, os serviços voltados para meninas adolescentes e mulheres jovens e migrantes vivendo com HIV foram os mais afetados pelo congelamento dos EUA.

Continua após a publicidade

Meninas e mulheres sem clínicas

O UNFPA, a agência de saúde sexual e reprodutiva das Nações Unidas, também confirmou o fim de todos os acordos de financiamento pelo governo dos Estados Unidos a seus projetos. 48 doações totalizando aproximadamente US$ 377 milhões foram concedidas para que a agência fornecesse cuidados essenciais de saúde materna, proteção contra violência e tratamento de estupro em locais como Afeganistão, Chade, República Democrática do Congo, Gaza, Haiti, Mali, Sudão e Síria.

"Nos últimos quatro anos, esses investimentos que salvaram vidas evitaram mais de 17 mil mortes maternas, 9 milhões de gravidezes indesejadas e quase 3 milhões de abortos inseguros, expandindo o acesso ao planejamento familiar voluntário", disse.

"E alcançamos mais de 13 milhões de mulheres e jovens com serviços de saúde sexual e reprodutiva, como exames de câncer do colo do útero, aconselhamento sobre contracepção e atendimento pré-natal e de parto seguro", constatou.

Agora, o corte "devastador" forçará o fechamento de "milhares de clínicas de saúde". "As mulheres em zonas de crise serão forçadas a dar à luz sem medicamentos, parteiras ou equipamentos, colocando suas vidas e as vidas de seus bebês em risco", alertou.

"As sobreviventes de estupro não terão acesso a aconselhamento e cuidados médicos. As parteiras que realizam partos nas piores crises humanitárias do mundo perderão sua capacidade de trabalhar. As remessas de suprimentos médicos que salvam vidas para os campos de refugiados serão interrompidas", revelou o levantamento.

Continua após a publicidade

Reformas aos 80 anos

Ciente das dificuldades, a ONU já lançou o que promete ser uma de suas reformas administrativas mais profundas.

Nesta semana, uma força tarefa foi anunciada pelo secretário-geral, António Guterres, e que terá a missão de promover cortes. Segundo ele, a entidade entra em seu sétimo ano de profunda crise de liquidez, com salários congelados e incapaz, em certos momentos, de pagar por serviços contratados.

Em fevereiro, Trump indicou que estava disposto a manter os EUA na ONU. Mas alertou que "a entidade precisa se organizar". Isso, porém, é visto como um sinal de que a Casa Branca quer que a entidade apenas se concentre em temas que ela estiver de acordo em financiar.

Para 2025, o orçamento de US$ 3,7 bilhões deveria ser em grande parte bancado pelos americanos e chineses que, juntos, arcam com 40% dos custos a partir deste ano. Mas as duas potências somavam, em 2024, uma dívida de US$ 2 bilhão com a ONU.

Apenas os americanos devem mais de US$ 1,5 bilhão. O último repasse para os cofres da ONU por parte de Washington ocorreu em novembro, com Joe Biden fazendo um pagamento de apenas US$ 275 milhões.

Continua após a publicidade

Guterres também admite que outro problema é a falta de pagamento pelo restante da comunidade internacional. Até 7 de março, 73 estados-membros - pouco mais de um terço - haviam pago integralmente suas contribuições orçamentárias. Em meio à crise de caixa, as Nações Unidas reduziram os gastos planejados em até 20% e impuseram um congelamento das contratações.

"As Nações Unidas nunca foram tão necessárias. Mas estes são tempos de intensa incerteza e imprevisibilidade", disse o secretário-geral. "Nem todos os Estados membros pagam integralmente, e muitos também não pagam no prazo", disse ele.

A nova força-tarefa será liderada pelo subsecretário-geral Guy Ryder e se concentrará em três áreas: melhoria da eficiência, revisão de mandatos e avaliação de reformas estruturais mais profundas.

"Os orçamentos das Nações Unidas não são apenas números em uma folha de balanço - eles são uma questão de vida ou morte para milhões de pessoas em todo o mundo", disse Guterres.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.