Julgamento de Bolsonaro põe democracia brasileira sob os holofotes do mundo
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O julgamento de Jair Bolsonaro no STF não é apenas o processo de um ex-presidente indiciado por tentativa de golpe de estado. Acompanhado com atenção fora do Brasil, o julgamento que começou nesta terça-feira é considerado como um teste da capacidade das democracias de se defenderem contra rupturas, usando o estado de direito e suas instituições.
O processo ocorre num momento particular no mundo, com a extrema direita avançando no desmonte de valores democráticos e capitaneada por um movimento com fortes traços autoritários comandado a partir do Salão Oval.
De fato, nos círculos acadêmicos nos EUA um novo fenômeno ganhou força nos últimos meses: a leitura coletiva da obra de Sinclair Lewis, "It Can't Happen Here" (Não Pode Acontecer Aqui), um roteiro dos anos 30 sobre o risco de o fascismo desembarcar nos EUA.
O livro conta a história de como um "homem comum", o senador Buzz Windrip vence a eleição presidencial de 1936 e transforma os EUA em uma ditadura fascista. Antes da eleição, a maioria dos americanos assume que o fascismo não tinha como ser instaurado no país.
Num de seus trechos, um dos personagens descarta o risco do autoritarismo nos EUA, como se a alma de um país fosse seu escudo contra a tirania. "Isso não poderia acontecer aqui na América, de jeito nenhum! Somos um país de homens livres", afirmou.
Mas, com a eleição vencida, já é tarde demais para impedir que a tirania seja uma realidade. A obra, assim, relata como Doremus Jessup, um pequeno editor de jornal de Vermont, se deparou com uma situação inesperada. Em questão de meses, todos os que falam, escrevem ou protestam contra o governo começam a desaparecer, deixando Jessup para decidir como ele e seu jornal, o Daily Informer, seriam parte da luta pela sobrevivência da democracia.
Cem anos depois ter sido escrita, a releitura da obra se transformou num sinal do temor de que o colapso da democracia não é mais algo a ser completamente descartado. Nem nos EUA e nem nas principais capitais do Ocidente.
Impensável, o colapso da democracia é uma ameaça real diante do avanço de movimentos que, deliberadamente, trabalham de forma sofisticada, permanente e sem limites por seu desmonte.
Ao longo do ano de 2024 e nos primeiros meses de 2025, ficou evidenciado como o sistema político americano esteve profundamente ameaçado. Como uma sátira distópiça, comícios para as eleições flertaram com ideias supremacistas e declarações que, em outros momentos, entrariam na classificação do fascismo.
Nas periferias pobres do país ou nas reuniões de partidos, pessoas traduziam em ódio a frustração de seus corações partidos e promessas não cumpridas, esperanças e sonhos adiados.
Divididos, os americanos ouviram de líderes republicanos apelos ao autoritarismo e xenofobia, sempre regado à demagogia.
De outro lado, democratas tentaram convencer que representavam a opção pela civilização, pela liberdade e pelos direitos fundamentais. Mas não conseguiram seduzir uma sociedade que vive a pior situação social entre os países desenvolvidos. Hoje, são 40 milhões de americanos vivendo abaixo da linha da pobreza e outros tantos sem a possibilidade de sonhar em dar aos filhos uma vida melhor.
A América de Trump não é a única que vive esse momento crítico. Na Alemanha, 80 anos depois da derrota do nazismo, um partido de extrema direita e que é herdeiro de sangue da cúpula que acompanhou Adolf Hitler, chegou em segundo lugar nas eleições de 2025, com um quinto dos votos. Na Espanha, os netos do franquismo desfilam orgulhosos. Na França, Holanda, Áustria, Portugal e em tantos outros países, a extrema direita afirma abertamente que tem ambições de poder.
E é neste momento crítico para a história política do mundo que o Brasil passa a ser um dos focos de atenção. Desta vez, porém, não mais como um elemento de instabilidade. Mas como um potencial exemplo sobre de que maneira uma sociedade pode dar respostas ao autoritarismo e ao hackeamento da democracia. Uma resposta por meio de suas instituições, com os instrumentos do estado de direito.
A peça de denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras 33 pessoas por golpe de estado e crime contra a democracia, portanto, não é apenas um documento isolado, independente de qual seja seu destino.
Ela faz parte de uma operação para tentar blindar o estado de direito, num processo que começou ainda em 2021. Naquele momento, a eleição no ano seguinte não era apenas mais uma escolha de quem ocuparia a presidência da maior economia da América Latina. Para democracias e movimentos de extrema direita de todo o mundo, aquele era um momento chave.
Em julho daquele ano, uma reunião entre os chefes da pasta de Defesa do Brasil e dos EUA sinalizou aos militares em Brasília que eles não teriam o respaldo de Washington, caso optassem por uma aventura golpista.
De um lado da mesa, estavam Laura Jane Richardson, general quatro estrelas do Exército dos EUA e comandante do Comando Sul, e Lloyd Austin, secretário de Defesa norte-americano.
De outro, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa do Brasil e ex-comandante do Exército brasileiro.
Fontes que estiveram naquela sala relembram como o tom usado pelos americanos foi claro: as instituições democráticas brasileiras eram sólidas. Ou seja, não haveria qualquer tipo de apoio a uma ofensiva por parte dos militares brasileiros em relação ao questionamento contra a democracia no país.
O recado sutil foi entendido por todos que estavam naquele local. O governo ainda receberia uma série de visitas do mais alto escalão do governo americano, incluindo o chefe da CIA (agência de inteligência dos EUA) e a cúpula da Segurança Nacional.
Assim, a pressão discreta por parte dos EUA ajudou a mandar um recado aos militares brasileiros de que um processo golpista não encontraria respaldo pelo mundo. Pesou, ainda, uma carta de senadores americanos pedindo que o presidente Joe Biden suspendesse qualquer acordo militar com o Brasil, caso uma ruptura institucional ocorresse. O recado era simples: um golpe poderia, até ocorrer. Mas o dia seguinte do novo regime traria custos elevados para aqueles no poder.
Sem o apoio de membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), restaria ao eventual novo governo golpista apenas alianças com párias internacionais e regimes isolados dispostos a usar o Brasil para fortalecer posições contra os EUA.
Se a ação americana deu resultados, a iniciativa não ocorreu por acaso e nem se limitou aos EUA. Desde 2021, forças políticas nacionais, ministros do STF, grupos de ativistas, embaixadores e entidades de direitos humanos começaram a identificar que o cenário de um eventual golpe poderia ocorrer no Brasil, repetindo a invasão do Capitólio nos EUA ou criando dificuldades e instabilidade para o novo governo.
A ofensiva brasileira tinha como objetivo criar uma situação na qual o custo de um golpe fosse insuportável aos seus apoiadores, desde militares até operadores do sistema financeiro. Para isso, precisavam que o mundo impusesse esse custo.
Em sigilo, conversas começaram a ser realizadas para alertar países de que era necessária uma reação para ajudar a blindar a democracia brasileira. A estratégia contou com vários atores, de diversos Poderes.
Um deles foi o uso deliberado do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e uma ofensiva para convencer embaixadas estrangeiras em Brasília de que as urnas eram confiáveis e que o sistema era sólido.
Ainda em 2022, uma visita organizada pelo Judiciário aos delegados de vários países causou uma profunda irritação em Bolsonaro, já que desmentia a própria narrativa do presidente.
Em Washington e em capitais europeias, grupos de ativistas brasileiros foram recebidos por governos, deputados e autoridades, justamente para tratar da ameaça que a eleição no final daquele ano representava.
Embaixadores aposentados e dissidências dentro do Itamaraty também agiram para fazer soar o alerta em diversas capitais pelo mundo. "O recado era de que existia uma chance real de que o governo Bolsonaro repetiria o comportamento de Trump e não aceitaria o resultado da eleição", relembra um embaixador brasileiro, na condição de anonimato.
Nos EUA, o embaixador Thomas Shannon também foi um importante interlocutor entre o gabinete de Joe Biden e aqueles que alertaram para o risco de um golpe.
O reforço da blindagem internacional viria ainda na ampliação de observadores internacionais, algo que Bolsonaro tentou bloquear. O TSE, porém, se apressou para fechar acordos e garantir a presença estrangeira durante a eleição.
A eleição, a posse do governo Lula e os ataques de 8 de Janeiro mostraram que a comunidade internacional estava ao lado da democracia, enquanto observadores passavam a considerar o Brasil como um campo de testes sobre como lidar com a extrema direita e elementos claramente autoritários.
Hoje, portanto, a atuação da Justiça para investigar uma tentativa de golpe de Estado e disseminação de desinformação amplia a construção da imagem externa do Brasil como um eventual exemplo a ser seguido no dilema sobre como enfrentar a extrema direita.
Se a resposta do país contra o golpismo não se limita à denúncia da Procuradoria Geral da República, ainda assim o julgamento é um ato fundamental de resistência democrática. Uma resistência construída com investigação, apuração, dados e a defesa dos acusados.
A democracia morre no escuro e em plena luz do dia. Ela morre e pode ser assassinada. Num beco de uma rua, na rachadura de uma barragem, num barulho de uma serra numa floresta, na falta de um leito, num envelope com dinheiro ou no medo de andar de mãos dadas com quem optarmos por amar. E também morre numa trama para derrubar um governo eleito democraticamente.
O Brasil, portanto, tem agora a chance e os instrumentos de entrar para a história das democracias como tendo resistido aos abalos sísmicos de movimentos autoritários, em seu novo modelo tecno digital do século 21.
E o mundo inteiro está de olho.
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