Independência da Comissão Interamericana será foco de candidato brasileiro

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Numa das eleições mais disputadas para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, não são apenas as vagas no órgão que estão em jogo. Diante da ofensiva da extrema direita e das ameaças feitas pelo governo norte-americano de suspensão de recursos, o que também está em questão é sua independência.
E é neste contexto que o Brasil lançou a candidatura do acadêmico Fabio de Sá e Silva, que já esteve à frente de pesquisas e políticas em temas prisionais, de segurança pública e acesso à justiça. Silva já trabalhou no antigo Ministério da Justiça e foi consultor de vários organismos internacionais com atuação em direitos humanos, incluindo a própria Comissão.
A eleição no organismo é considerada como estratégica, tanto para os governos progressistas como para o movimento ultraconservador. O voto ocorre no meio do ano e vai definir três das sete vagas da Comissão.
Há duas semanas, entre os diversos candidatos anunciados, a Casa Branca colocou na corrida a filha de um dissidente cubano para uma das três vagas. A iniciativa de Washington faz parte da estratégia para influenciar a agenda internacional de direitos humanos e instrumentalizar as agências para cumprirem os objetivos de política externa da Casa Branca. O nome escolhido por Trump para o processo eleitoral é Rosa María Payá, filha do falecido Oswaldo Payá, opositor cubano. Segundo a Casa Branca, ele foi "assassinado pelo regime cubano".
Ao longo da história, o órgão foi fundamental para denunciar ditaduras na América Latina e alertar sobre graves violações de direitos humanos. Mas, recentemente, passou a ser alvo da extrema direita para tentar influenciar sua agenda, inclusive com chantagens. Com os americanos bancando uma parcela significativa do orçamento do organismo, deputados da base de Donald Trump ameaçaram cortar os recursos da Comissão, caso o órgão não denunciasse as supostas violações cometidas pelo STF no Brasil.
Em sua primeira entrevista desde que o governo brasileiro lançou sua candidatura, Silva fala com exclusividade ao UOL sobre suas prioridades, os desafios dos direitos humanos e a situação do Brasil diante de sentenças internacionais.
Eis os principais trechos da entrevista:
O que levou o sr. a considerar entrar na corrida por um dos postos na Comissão?
Há algum tempo eu andava inquieto sobre o futuro dos direitos humanos na nossa região. Entendia que estavam sob pressão de dois vetores convergentes. Por um lado, demandas históricas e não resolvidas de proteção e promoção - agravadas por emergências climáticas e humanitárias e ameaças digitais. Por outro lado, uma crise do multilateralismo e uma dificuldade de se alcançarem consensos dentro dos estados e entre estados.
Nos últimos meses, percebi que essas inquietações eram compartilhadas por muitos na sociedade civil, na academia, no sistema de justiça e na classe política do Brasil. Entre essas pessoas também havia uma percepção de que o nosso país deveria se colocar mais ativamente nesse cenário, inclusive com atuação em espaços como o da Comissão.
Houve então uma proposta de ministros como Macaé Evaristo, Jorge Messias e Mauro Vieira, acolhida pelo próprio presidente Lula, no sentido de que eu fosse candidato à Comissão. Entendi que deveria aceitar o desafio, inclusive na tentativa de representar aquele conjunto mais amplo de atores com os quais estava dialogando a respeito desse assunto.
Quais serão suas prioridades se o sr. for eleito?
Imediatamente, quero ajudar a proteger o legado normativo da Comissão, da Corte e das Relatorias em meio a turbulências. E também a proteger a independência da Comissão frente a possíveis cortes de verbas ou restrições políticas que possam se abater sobre ela.
Em paralelo a isso, vejo espaço para modernizar e tornar mais eficiente e transparente o funcionamento da Comissão - embora isso dependa um pouco de recursos.
Mas eu diria que a grande prioridade é ajudar a construir um ambiente de maior diálogo - entre Estados, organizações da sociedade civil, pessoas que sofrem violações e os membros da própria Comissão. Diálogo será fundamental para que, num contexto nebuloso, possamos trabalhar de forma efetiva e legítima, identificando os problemas mais agudos que afligem a região e mobilizando os instrumentos mais apropriados para enfrentá-los.
Apelando para uma metáfora do futebol, como sempre fazemos muito aqui no Brasil, eu poderia dizer que quero ajudar a colocar a bola no chão.
A região vive uma encruzilhada, com forças conservadoras e progressistas lutando por influência e poder. Onde entra o debate de direitos humanos nessa disputa e, em especial, a atual eleição?
Os direitos humanos são, antes de tudo, uma linguagem -- um conjunto de conceitos como liberdade, igualdade, dignidade e indivisibilidade, com os quais interpretamos a realidade e guiamos nossa ação no mundo. Nosso primeiro desafio é manter essa linguagem viva e relevante: que continue presente nas relações internacionais, em vez de ser abandonada em nome da força bruta.
Mas usá-la não basta. É preciso fazê-lo com seriedade e consistência — respeitando fontes, princípios e precedentes.
Vamos imaginar um presidente que, por decreto, revoga todas as proteções ambientais, alegando que isso impulsionará a economia e garantirá direitos como trabalho, moradia e alimentação. Ainda que revestido do discurso dos direitos humanos, esse projeto ignora o princípio da indivisibilidade: não se realizam alguns direitos à custa da destruição de outros. Afinal, um meio ambiente saudável é condição para o exercício de vários outros direitos.
Se mantidos como linguagem relevante e aplicados com seriedade, os direitos humanos continuarão sendo uma ferramenta poderosa para mediar disputas. Eles impõem limites — ainda que simbólicos — às pretensões mais extremas de facções políticas e permitem acomodações mais justas, em que as liberdades de uns não se afirmem às custas das de outros.
Vemos movimentos de extrema direita tentando redefinir conceitos como liberdade de expressão, democracia e até direitos humanos. Como o sr. avalia esse fenômeno?
É a questão que mencionei antes sobre colocar uma roupagem frágil. Precisamos indagar se esses conceitos estão sendo usados com seriedade e consistência ou apenas com oportunismo.
Os direitos humanos não são uma tábula rasa sobre a qual se pode depositar qualquer conteúdo, eles têm uma história e uma densidade normativa. Foram construídos historicamente, a partir de tomadas de consciência sobre violações dramáticas - nos planos doméstico e internacional.
Podem sempre ser aperfeiçoados, mas sem ignorar ou negar essa história.
ONGs e ativistas têm denunciado o tratamento dado contra imigrantes nos EUA. Como a Comissão deveria conduzir esse debate?
No nosso hemisfério, fatores como violência, desigualdade, crise climática e instabilidade política motivam fortes fluxos migratórios, muitas vezes até forçados.
Cada país tem soberania para adotar suas políticas migratórias, e hoje há uma tendência de que essas políticas adotem uma perspectiva mais securitária. Mas os países também soberanamente reconhecem parâmetros mínimos de tratamento decente e dignidade.
A partir disso, eu diria que a relação entre migração e direitos humanos está bem presente na nossa consciência regional - inclusive com o reconhecimento de que há um direito a migrar e que a condição de migrante não deve privar ninguém de outros direitos civis básicos.
A comissão está acompanhando de perto esse tema em diversos países e, recentemente, chegou a emitir comunicações importantes a respeito.
Comissões da ONU já alertaram para a situação na Venezuela e Nicarágua. Que papel a comunidade internacional pode ter para lidar com as violações que ocorrem nesses países?
Além da ONU, a própria Comissão Interamericana também já produziu diversos alertas e relatórios documentando violações de direitos humanos nesses e noutros estados. E inclusive deu início a casos nos quais foi reconhecida a responsabilidade por tais violações.
A Comissão pode e deve utilizar as oportunidades e instrumentos que tem para tentar extrair compromissos desses estados, para que violações sejam cessadas e não se repitam.
De modo mais geral, a comunidade internacional deve respeitar a soberania e a autodeterminação de povos, ao mesmo tempo em que engaja com os estados para garantir o respeito aos direitos humanos - o que pode acontecer em organizações como a OEA e a CELAC, ou ainda na relação entre países, bilateralmente e em grupo.
Parece difícil fazer isso e é. Mas se não for feito assim, estaremos diante da barbárie no plano internacional.
O Brasil já foi condenado e denunciado no sistema interamericano. O país, porém, é acusado de não ter sempre cumprido as sentenças. Como o sr. vê esse desrespeito?
Primeiro eu moderaria um pouco essa acusação. Entendo que, apesar de alguns soluços, o Brasil tem um histórico bastante respeitoso na sua relação com o sistema interamericano.
O país acata e busca cumprir sentenças da Corte e medidas determinadas pela comissão; além de fazer acordos de solução amistosa - e tudo isso se traduziu em mudanças importantes e duradouras em áreas como violência doméstica de gênero (Lei Maria da Penha) ou combate ao trabalho escravo. Agora mesmo a Comissão reconheceu os esforços do país na implementação das cautelares emitidas no caso UNIVAJA, [sobre o assassinato do indigenista] Bruno Pereira e [do jornalista britânica] Dom Phillips.
Muitas determinações dependem de mudanças estruturais no país, o que pode ser dificultado, inclusive, pela questão federativa e por vezes por interesses econômicos.
Entendo ainda que descumprimentos de sentenças internacionais - apesar de frustrantes para vítimas e peticionários, que em geral levam décadas até conseguir esse tipo de pronunciamento - não são um "fim da linha" para o sistema. As sentenças, mesmo quando descumpridas, geram insumos para a continuidade na mobilização social, que pode dar frutos futuros. Direito é processo dentro do processo histórico, dizia um professor querido; um pronunciamento judicial doméstico ou mesmo internacional é apenas um evento dentro disso.
Vamos pensar numa situação em que se pode considerar que o Brasil está descumprindo parcialmente uma sentença, os casos da linha Gomes Lund [militante do PCdoB assassinado no Araguaia durante a ditadura em 1973] e [o jornalista Vladimir] Herzog [assassinado em 1975 pela ditadura]. Há uma ação (ADPF) no Supremo que busca a revisão da lei da anistia de 1979, para que o país se adeque ao que decidiu a Corte Interamericana - a Corte considerou que a lei de anistia é incompatível com as obrigações assumidas internacionalmente pelo país.
A ação tramita há anos; enquanto isso, prevalece o entendimento do Supremo de que a lei de anistia é constitucional. Mas no processo de litigar esses casos no Brasil e fora, a sociedade construiu acúmulo e capacidade que continua mobilizando em busca de memória e verdade. E essa mobilização levou a que este ano o mesmo Supremo considerasse a ocultação de cadáver como crime permanente e, por isso, não alcançado pela lei de anistia.
Ou seja, abriu-se uma fenda na ordem jurídica interna, que permitirá novas investigações em casos de desaparecidos pela ditadura civil-militar. E a sentença da Corte Interamericana, mesmo ainda estando pendente de pleno cumprimento, é parte da cadeia de eventos que levou a isso.
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