Trump instrumentaliza Páscoa e abre Casa Branca para cristãos nacionalistas

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Carregando seus filhos no colo pelos corredores do Vaticano, o vice-presidente dos EUA, JD Vance, queria dar neste sábado de aleluia uma mensagem clara à sua base mais radical: a religião estava de volta ao poder. A viagem do vice-presidente foi apenas um componente de uma ofensiva para transformar a Semana Santa em um marco da nova relação entre a fé e o estado, sob Donald Trump.
O Vaticano tem sido um duro crítico do governo Trump e, segundo fontes em Roma, o motivo é simples: há uma percepção de que Trump instrumentaliza a religião, fechando os olhos para dramas humanos, principalmente na questão da imigração.
Em fevereiro, o papa Francisco refutou o conceito teológico que Vance usou para defender a repressão contra imigrantes, enviando uma carta aos bispos católicos dos EUA. "O que é construído com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de todo ser humano, começa mal e terminará mal", disse o papa. O governo Trump rebateu, alertando que o papa deveria ocupar de sua Igreja.
Nesta semana, portanto, Francisco usou um argumento protocolar de que Vance não seria chefe de estado para declinar um pedido para que o vice-presidente fosse recebido pelo pontífice para uma reunião. A tarefa ficou com o cardeal Pietro Parolin, o secretário de Estado e espécie de chanceler da Santa Sé.
Oficialmente, o Vaticano indicou que o encontro foi "cordial" e que ambos trocaram impressões sobre a situação internacional. No comunicado, a Santa Sé deixou claro que, entre os temas da agenda, estavam a imigração, refugiados e presos.
Neste domingo, Francisco concedeu um "encontro privado" com Vance, no qual ele ofereceu sua benção. O curto comunicado do Vaticano explica que o gesto durou apenas "poucos minutos".
Para a Casa Branca, porém, o momento é o de reafirmar sua postura diante do que acredita ser a doutrina cristã e a Semana Santa foi fundamental para delinear o que o governo estima ser a relação entre o estado e a religião.
Numa mensagem oficial, Trump causou mal-estar entre ativistas de direitos humanos, congressistas e grupos de outras religiões nos EUA. "Nesta Semana Santa, Melania e eu nos unimos em oração aos cristãos que celebram a crucificação e a ressurreição de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo - o Filho vivo de Deus que venceu a morte, nos libertou do pecado e abriu as portas do Céu para toda a humanidade", diz a mensagem oficial de Trump.??
Na avaliação da entidade Freedom From Religion Foundation, a linguagem usada parecia ser "mais de um púlpito do que do Salão Oval". "De forma ainda mais ameaçadora, o anúncio estabelece uma posição firme contra a separação constitucional entre Estado e Igreja", diz a entidade, que advoga pelos direitos de cidadãos que optam por não ter religião.
O que causou também preocupação entre constitucionalistas foi o fato de que o texto oficial afirma que "nesta Semana Santa, meu governo renova sua promessa de defender a fé cristã em nossas escolas, forças armadas, locais de trabalho, hospitais e salas de governo".
Trump foi além. Nas redes sociais, nos dias seguintes, ele afirmou que "os cristãos de todo o mundo se lembram da Crucificação do Filho Unigênito de Deus, nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo e, no domingo de Páscoa, celebramos Sua Gloriosa Ressurreição e proclamamos, como os cristãos têm feito há quase 2.000 anos, ELE REVIVERÁ!'.Os Estados Unidos são uma nação de crentes. Precisamos de Deus, queremos Deus e, com Sua ajuda, tornaremos nossa nação mais forte, mais segura, maior, mais próspera e mais unida do que nunca. Obrigado, e FELIZ PÁSCOA", completou.
Para diplomatas que frequentam a Casa Branca, o tom usado por Trump reflete uma nova realidade no centro do poder dos EUA: a presença de um segmento do cristianismo que defende que a religião deve usar o poder para ser disseminada e para moldar o mundo.
Desde que assumiu, Trump assinou uma ordem executiva para criar uma força-tarefa na procuradoria-geral dos EUA para investigar ações na sociedade americana contra cristãos. Ele também determinou a "erradicação" de qualquer "tendência anticristã" nas agências federais.
Trump ainda criou um Escritório de Fé da Casa Branca, liderado pela reverenda Paula White, apresentada como "conselheira religiosa" do presidente e "tele-evangelista". Polêmica e milionária, ela chegou a sugerir que "confederações demoníacas" roubaram e eleição de 2020 na qual Trump foi derrotado. Ela ainda chamou o movimento Black Lives Matter de "anti-cristo".
Mas as acusações publicadas no Wall Street Journal são de que ela tem usado seu novo cargo dentro da Casa Branca para promover eventos com a finalidade de arrecadar recursos. No caso, para sua igreja.
Anjo da guarda por mil dólares
White já esteve envolvida em outras polêmicas. Em 2016, ela colocou à venda "sementes da ressurreição". O valor de US$ 1144,00 teria sido, segundo ele, uma recomendação de Deus.
"Não é comum eu pedir de forma muito específica, mas Deus me instruiu e eu quero que vocês ouçam. Isso não é para todos, mas é para alguém. Quando você semeia esses US$ 1.144 com base em João 11:44, eu acredito na vida da ressurreição", disse, num vídeo.
Ela ainda deu uma opção. Para pessoas que não teriam como pagar o valor sugerido por Deus, ela aceitaria também US$ 144 ou US$ 44.
No dia 23 de março, White gravou um vídeo já de preparação para a Semana Santa, na qual ela ofereceu "sete bênçãos sobrenaturais". A mensagem terminava com um pedido de doações de mil dólares. O pacote incluiria uma oração por parte da aliada de Trump para que um anjo fosse designado para cada pessoa.
"Deus designará um anjo para você", disse a aliada de Trump. "Ele será um inimigo de seus inimigos. Ele lhe dará prosperidade. Ele afastará de você as doenças. Ele lhe dará vida longa. Ele lhe trará aumento na herança e lhe dará um ano especial de bênção", prometeu
Ela enfatiza que o ato não é transacional, afirmando: "Você não está fazendo isso para obter algo, mas está fazendo isso em honra a Deus, percebendo o que pode receber por sua oferta especial de Páscoa de US$ 1.000 ou mais, conforme a orientação do Espírito Santo".
Sua assessoria de imprensa negou que ela tenha vinculado a oração ao pagamento, indicando que qualquer doação deve ser feita apenas 'conforme a orientação do Espírito Santo'.
Se o escritório da fé existia em outros governos, ele era formado por representantes de todas as religiões. Agora, os representantes são todos de uma ala específica do cristianismo ligado ao nacionalista branco, permeado por doutrinas da prosperidade.
White não é a única no gabinete de Trump. A Secretária de Imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, usou a Semana Santa para orar diante dos jornalistas, antes de iniciar uma coletiva de imprensa.
As escolhas de Trump para ocupar cargos-chave na orientação religiosa do governo também revelam uma preferência um certo segmento do cristianismo, fortemente vinculado ao nacionalismo.
Umas delas é Jennifer Korn, assistente adjunta do Escritório da Fé. Antes de assumir o cargo, ela dirigia um grupo cristão de direita. Também faz parte da iniciativa William Wolfe, que havia acusado o fato de que "os cristãos não eram bem-vindos no governo Biden ou no governo Obama". Hoje, ele é um dos defensores da política de deportação. "Acreditamos que isso está diretamente relacionado à preservação da América como a conhecemos", disse Wolfe.
Fundamental ainda na posição religiosa de Trump nesta semana tem sido Russell Vought, um dos principais nomes na promoção do nacionalismo cristão. Vought é um dos arquitetos do Projeto 2025, o plano de direita que orienta muitas das políticas públicas de Trump.
O presidente, porém, diz que nunca leu o Projeto 2025.
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