Jamil Chade

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Opinião

'Papa é argentino, mas Deus é brasileiro', me garantiu Francisco

Jorge Bergoglio tinha acabado de assumir o pontificado e estava fazendo sua primeira viagem, justamente ao Brasil. No avião entre Roma e o Rio de Janeiro, em julho de 2013, o papa Francisco causou um assombro ao aparecer para embarcar levando sua própria mala de mão, rejeitando a ajuda de seus assessores.

Lembro-me de estar já dentro do avião e ver, pela janelinha, aquela cena. Pensei: "começamos muito bem".

Instantes depois da decolagem, já em pleno voo, Francisco deixou a ala reservada do avião da Alitalia e veio ao setor onde estavam os jornalistas e outros passageiros que fariam parte da missão. Não era minha primeira viagem com um papa. Mas aquela seria radicalmente diferente.

Com seu sorriso e sempre uma palavra de acolhimento, Francisco pediu para saudar cada um de nós. Com o papa Bento 16, o protocolo para encontrá-lo exigia que estivéssemos de gravata, que beijássemos seu anel e que ele seria quem nos dirigiria a palavra. Não o contrário.

Com Francisco, nada disso existia. Quando chegou minha vez, me apresentei e ele, ao entender que eu era brasileiro, me disse:

"Sabe que o papa é argentino. Mas vocês brasileiros podem ficar tranquilos. Sabe o motivo? Deus é brasileiro", e soltou uma gargalhada.

Foto de arquivo, 2012 - Jamil Chade e o papa Francisco, a caminho do Rio de Janeiro
Foto de arquivo, 2012 - Jamil Chade e o papa Francisco, a caminho do Rio de Janeiro Imagem: Arquivo Pessoal

Em muitos aspectos, foi no Rio de Janeiro que o mundo descobriu o que o papa pensava e como agiria. Em uma semana no Brasil, Francisco esclareceu seus planos para a Igreja, reconheceu as "incoerências" da instituição e não deixou de criticar os sacerdotes e bispos. Os recados à sociedade também foram fortes. Aos jovens, os alertou que não poderiam "lavar as mãos" diante dos problemas atuais do mundo e precisavam agir. Também os convocou para serem missionários.

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Às classes dirigentes e aos políticos, a mensagem foi especialmente dura. O papa atacou a corrupção, pediu que os pobres fossem ouvidos e que governos sejam responsáveis por toda a sociedade.

Mas foi o banho de multidão e, acima de tudo, o impacto de suas mensagens que passaram a dar um conteúdo ao seu pontificado e marcar uma nova realidade no Vaticano: o "governo" de Bento 16 acabara e seriam as ideias de Francisco as que iriam marcar o ritmo dos acontecimentos na Santa Sé.

Passei uma semana inteira ao seu lado, desde seu embarque em Roma, a viagem de doze horas no avião até o retorno de volta ao Vaticano, embarcando uma vez mais com a comitiva.

Já no voo entre Roma e o Rio de Janeiro, Francisco não escondia sua ansiedade. Não dormiu um só minuto nas 12 horas de viagem. Talvez soubesse que aquilo que o esperava no Rio não era apenas um encontro com jovens, mas o início de fato de seu pontificado. Além de falar com os jornalistas, despachou com seus assessores, conversou com cardeais e repassou ponto a ponto sua viagem, circulando entre os corredores do avião.

Ao desembarcar, deixava de ser o bispo de Roma para agir como um papa e, neste caso, um dos mais populares em anos. A transição entre as duas realidades foi acelerada por conta do incidente de que seu carro acabou se perdendo do cortejo e acabou preso no meio do trânsito numa das cidades mais caóticas do mundo. Sua popularidade, além de sua segurança, estavam sendo colocadas à prova.

Federico Lombardi, então porta-voz do Vaticano, confirmou que tanto o motorista quanto o assessor direto do papa temeram pelo pior dentro do carro. Mas que o papa teria mantido sua tranquilidade.

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Os primeiros passos foram calculadamente cuidadosos, o que se refletiu em discursos moderados e quase nenhuma improvisação. Mas não demorou para que ele começasse a soltar suas mensagens, seus ataques frontais contra injustiças e não tivesse qualquer complexo em reafirmar os dogmas da Igreja. Não ficariam dúvidas. A forma e os gestos são novos. A prioridade com os pobres é nova. Mas não o Evangelho. Os dogmas da Igreja foram reafirmados, ainda que com um tom positivo, e não como ameaças.

Nos bastidores, à medida que a semana passava, pessoas próximas ao papa contam que ele mesmo se dava conta da dimensão da viagem e do próprio cargo. Apesar de agir da mesma forma que fazia como cardeal de Buenos Aires e usar as mesmas expressões, seu discurso ganhou uma dimensão internacional e as multidões que atraiu para a praia de Copacabana impressionaram os mais experientes cardeais. A praça São Pedro já tinha descoberto que esse papa era popular. Mas agora ele provou que também o é numa das praias mais conhecidas do mundo. Fontes no Vaticano confirmaram que o papa chegou a chorar durante a viagem por conta da emoção.

Um dos aspectos que chamou a atenção de seus assessores e os organizadores da viagem foi sua vitalidade. Apesar da agenda carregada, o papa que na época tinha 76 anos ainda encontrava tempo para trabalhar na reforma da Cúria, fazer consultas políticas e debater com cardeais. Houve ainda tempo para que ele se envolvesse diretamente em aspectos logísticos da viagem.

Se em diversas vezes o palco e o púlpito foram seu teatro, foi sobre o papamóvel aberto que uma parte substancial de sua missão ocorreu. Aos fieis argentinos, ele chegou a apontar que estava "enjaulado" e, em diversas ocasiões, mandou seus assessores insistirem às autoridades que não aceitaria ser blindado, nem por vidros e nem por seguranças.

Sobre o carro importado do Vaticano, à medida que a semana passava, o papa se sentia cada vez mais à vontade. "Ele estava acostumado apenas a trajetos curtos na Praça São Pedro e, por isso, sentiu um pouco quando chegou ao Rio. Mas logo gostou da ideia", brincou um de seus assessores.

De cima do carro, ele bebeu chimarrão, era alvo de centenas de bandeiras atiradas, mexia de um lado ao outro e chegou a fazer um gesto de torcedor quando viu, na multidão, uma camisa do San Lorenzo, seu time de coração.

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Por mais de 30 anos o Vaticano havia abandonado a ideia de um carro aberto ao papa, temendo um atentado. Mas a orientação de Francisco era de que, se ele estava pedindo que sacerdotes saíssem às ruas para pregar, ele teria de dar o exemplo. Não por acaso, seus assistentes revelaram que, para o papa, o momento mais importante de sua viagem foi sua presença numa favela.

Uma vez mais, ele estava apenas fazendo o que já era seu hábito em Buenos Aires. Mas, desta vez, a atitude de Bergoglio foi vista no mundo como a atitude de um papa preocupado com a miséria no planeta.

Não foi apenas o translado do papamóvel ao exterior que funcionou ou sua visita à favela. Para o vaticanista John Allen, o Vaticano e o papa deixam o Rio com a certeza de que sua mensagem, até então dada apenas para sua congregação em Roma, também ecoou em uma viagem internacional. "No Rio, Francisco mostrou ao mundo que existe um novo mandatário no Vaticano", disse Allen.

O Vaticano não nega: a viagem marcou uma ruptura de fato entre os pontificados de Bento 16 e de Francisco. Após a missa de um dos últimos dias, um de seus assistentes comentou que a missão ao Rio estaria chegando ao seu final, numa espécie de encorajamento a um papa que já dava sinais de cansaço e depois de chegar a sofrer com um resfriado diante das horas que passou no frio.

Mas ouviu algo tipicamente de um religioso que sabia que não tinha tempo a perder. O Rio, segundo ele, foi apenas o início de um caminho.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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