Jamil Chade

Jamil Chade

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Conclave mais global da Igreja terá pressão de fake news e disputa de poder

A escolha de um novo papa será marcada por uma dimensão inédita nos 2.000 anos da Igreja. Trata-se do conclave mais "global" da Santa Sé, resultado da nomeação por parte de Francisco de cardeais de diversas regiões mais pobres do planeta ou subrepresentadas.

No entanto, o processo será marcado pela forte pressão de movimentos ultraconservadores, proliferação de desinformação e o papel central das redes sociais.

Enquanto os preparativos para o sepultamento do papa Francisco ganham ritmo, forças políticas e diferentes tendências dentro do catolicismo se mobilizam para definir o futuro da Santa Sé.

Com sua saúde fragilizada, Francisco já havia dado instruções para que o processo não fosse marcado por incertezas e por um eventual vácuo de poder. Mesmo assim, dentro da Cúria, não restavam dúvidas de que a disputa, em um mundo profundamente dividido, será intensa.

Depois de 12 anos de um papado marcado por gestos progressistas e pela universalização da Igreja, grupos conservadores querem usar a ocasião para restabelecer dogmas e promover uma guinada na liturgia. Sua abertura para divorciados, homossexuais e mulheres causou mal-estar entre certos grupos que, em alguns momentos, chegaram a pedir sua queda.

Igreja mais universal em 2.000 anos

Francisco tentou blindar seu legado, escolhendo 108 dos 135 cardeais que poderão votar para escolher o novo papa. Nunca, nos mais de 2.000 anos da Igreja, o conclave foi tão "universal", com dezenas de eleitores do que o papa chamava das "margens do mundo".

A Europa continua sendo a mais representada, mas agora precisa dividir seu espaço. São 53 cardeais europeus que farão parte do conclave. A Ásia terá 23, contra 18 da África e 17 da América do Sul e 16 da América do Norte.

Ainda existe um desequilíbrio importante, com 17 cardeais italianos e apenas sete brasileiros. Mas nunca o Colégio Eleitoral reuniu pessoas de tantos países, um total de 71.

Na Capela Sistina, na hora do voto, estarão religiosos do Haiti, Papua-Nova Guiné, Timor Leste, Mianmar e Sudão do Sul. Mesmo na Europa, Francisco foi buscar na Albânia e em outras regiões cardeais para compor o colégio.

Continua após a publicidade

Em 2013, quando Francisco foi escolhido, existiam 59 europeus no conclave, na época com um total de 115 cardeais. Naquele momento, o Colégio de Cardeais tinha integrantes de apenas 48 países.

Em 2005, na escolha de Bento 16, o conclave contou com cardeais de 52 nacionalidades — 20 deles eram italianos.

Em 1978, os dois conclaves realizados em um só ano — por conta da morte do papa João Paulo 1º — tiveram cardeais de 50 países diferentes (48% deles eram europeus).

O conclave de 1963 contou com representantes de apenas 29 países. Em 1958, eram 22 e, em 1939, apenas representantes religiosos de 16 nacionalidades estavam presentes.

Progressistas x Conservadores

Hoje, a estimativa é de que 60% dos cardeais tenham posições coincidentes às de Francisco em temas como meio ambiente, justiça social e a condução da Igreja.

Do total de suas nomeações, o papa deixou metade delas para uma ala mais progressista da Igreja, ainda que tenha aberto 30% das nomeações para uma ala mais moderada.

Continua após a publicidade

O resultado de sua blindagem teve como objetivo mudar o mapa da Cúria. Hoje, apenas 20% dos cardeais seriam ligados ao movimento tradicionalista, crítico às reformas dos últimos anos.

Redes sociais e desinformação

Integrantes da Santa Sé apontam que, ainda que haja esperança de que uma continuidade seja estabelecida para o programa de Francisco, o teste real virá apenas na escolha do novo papa.

Pelas regras, o novo pontífice deve ser escolhido sem ingerência de fora, e quem viola estaria sujeito a excomunhão. Durante o período do conclave, eles estão proibidos de ver televisão, ler jornais e mesmo de falar ao telefone.

Mas o temor é de que, até que esses cardeais entrem para o processo de seleção, a pressão seja profunda, principalmente em campanhas nas plataformas digitais. O início do conclave ocorrerá duas semanas depois de seu sepultamento e, até lá, conversas e encontros sigilosos já estão ocorrendo entre os cardeais e a Cúria.

Vaticanistas e integrantes da Santa Sé confirmaram ao UOL que um dos maiores desafios será blindar os cardeais da interferência cada vez maior da internet.

Continua após a publicidade

"Será o primeiro conclave que viverá, de forma plena, o poder das redes", alertou Massimo Faggioli, professor de teologia da Universidade Villanova, na Filadélfia, em entrevista ao UOL. O vaticanista destaca como, já com o papa fragilizado, as plataformas foram tomadas por contas anônimas de ataque ao seu pontificado e a geração de conteúdo e desinformação sobre a eleição.

"Nunca a ideia de uma proteção aos cardeais foi tão atual como hoje", destacou.

Um sinal do que pode estar por vir foi identificado no Vaticano nas últimas semanas. Levantamento realizado pela empresa Cyabra e analisado por membros da Cúria mostrou o poder da desinformação.

Entre os dias 3 e 10 de março, quando Francisco já estava doente, a consultoria constatou que 31% das contas que discutiam o estado de saúde do papa na rede social X eram contas falsas. Ou seja, havia uma coordenação política na base dessa movimentação nas redes.

"Um número impressionante de 1.148 perfis não autênticos gerou coletivamente 1.387 publicações e comentários, espalhando narrativas falsas nas plataformas de mídia social", disse a empresa.

A Cyabra também descobriu que 41,6% das conversas sobre a saúde do papa eram negativas, refletindo uma preocupação generalizada, ceticismo e até mesmo hostilidade em relação ao Vaticano.

As falsas narrativas sobre a condição do papa Francisco se enquadram em três categorias principais:

Continua após a publicidade

Desinformação sobre a saúde e a morte do papa: as especulações divulgadas por perfis não autênticos incluíam muitas postagens questionando se o papa ainda estava vivo, fazendo perguntas e declarações — como "O papa está morto", "O papa está morto?" e "Onde está o papa?" — e alimentando a incerteza e a desconfiança.

Notícias falsas amplificadas por perfis falsos: contas falsas se agarraram à narrativa mentirosa de que o papa Francisco já havia falecido e a promoveram agressivamente, muitas vezes imitando atualizações de notícias para parecerem confiáveis. Esses perfis usavam frases repetidas e linguagem carregada de emoção, criando uma ilusão de consenso em torno da teoria da conspiração de que o Vaticano estava escondendo a morte do papa.

Atualizações oficiais de saúde usadas para desinformação: Muitas conversas faziam referência a declarações do Vaticano sobre a saúde do papa, mas mesmo essas declarações eram comumente compartilhadas com notícias falsas sobre sua morte ou respondidas com a mesma desinformação, muitas vezes abafando a verdade. As atualizações oficiais foram amplamente manipuladas por contas falsas para manter o engajamento.

Um caso ainda chamou a atenção, quando tiktoker italiano Ottavo entrou na enfermaria do hospital Gemelli em Roma. Seu objetivo era reforçar uma teoria da conspiração que circulava nas mídias sociais há semanas: que o pontífice de 88 anos estava morto "e o Vaticano se recusa a nos contar".

"Não há segurança alguma, nada mesmo", disse. "Eu nunca teria conseguido chegar até aqui se ele estivesse lá. Por essa razão, na minha opinião, o papa Francisco faleceu." Ottavo, porém, tinha entrado em uma ala do hospital onde não estava o papa.

Para o Vaticano, o estudo e os incidentes reforçaram a convicção de que era necessário conduzir uma batalha contra as notícias falsas, os teóricos da conspiração e as imagens geradas por IA (inteligência artificial) que circulam nas redes sociais.

Continua após a publicidade

A escolha foi por ser transparente sobre as condições de saúde — produzindo atualizações regulares e até uma mensagem de voz de sua cama de hospital. Isso incluiu relatar vômitos e espasmos brônquicos devido a um grande acúmulo de muco, exigindo que os médicos aspirassem seu trato respiratório em todas as ocasiões.

A atitude representou uma mudança profunda no comportamento do Vaticano que, tradicionalmente, optou por esconder a situação dos papas. Histórica seria a edição de 19 de agosto de 1914 do jornal do Vaticano L'Osservatore Romano que publicou um editorial condenando um jornalista que havia sugerido que Pio 10 estava resfriado. Vinte e quatro horas depois, o pontífice estava morto.

O próprio Vaticano admitiu, em 2023, o desafio que as redes sociais colocam. Naquele ano, o Dicastério para as Comunicações do Vaticano publicou o documento "Uma reflexão pastoral sobre o envolvimento com a mídia social". Nele, a Igreja debatia como usar as novas tecnologias para levar a mensagem do catolicismo.

"Os avanços na tecnologia tornaram possíveis novos tipos de interações humanas. De fato, a questão não é mais se devemos nos envolver com o mundo digital, mas como", afirmou.

O texto revela a preocupação com o impacto das redes. "Em uma época em que estamos cada vez mais divididos, em que cada pessoa se refugia em sua própria bolha filtrada, a mídia social está se tornando um caminho que leva muitos à indiferença, à polarização e ao extremismo", alertou.

Origem da palavra conclave

A palavra conclave vem justamente dessa dimensão de exclusão da pressão externa. Em 1268, a escolha de um novo papa se tornou um assunto tumultuado nas cidades medievais, e o processo duraria 1.006 dias.

Continua após a publicidade

Pressões externas e a instabilidade política em Roma levaram os cardeais a transferir a eleição papal para Viterbo, 80 km ao norte do Vaticano. Mas não havia acordo entre os 17 cardeais. Dois deles chegaram a morrer durante o processo.

O impasse passou a ser crítico, num momento em que a Igreja tinha amplos poderes pela Europa. Preocupadas, as autoridades políticas ordenaram o fechamento dos portões da cidade em 1º de junho de 1270 para impedir que influências externas adiassem ainda mais a escolha.

Eles foram "fechados com chave" — origem da palavra conclave — dentro do palácio episcopal em Viterbo. A comida foi racionada para apenas pão e água, e as janelas foram progressivamente fechadas, limitando o contato dos cardeais com o mundo exterior.

Os esforços acabaram produzindo resultados e, em 1º de setembro de 1271, após quase três anos de deliberações, Teobaldo Visconti, o arcebispo de Lyon, foi eleito o novo papa e recebeu o nome de papa Gregório 10. Seria ele quem, anos depois, estipularia as regras do processo de seleção, formalizando a reclusão dos cardeais e, portanto, estabelecendo o "conclave".
.
Em 2013, no conclave que elegeu Francisco, as redes sociais tinham acabado de fazer seu desembarque. Naquele momento, a preocupação do Vaticano era para que os cardeais não tivessem a tentação de tuitar ou fazer postagens no Facebook. Assim, se de um lado da Capela Sistina estava o fogão que queima os votos do conclave e gera a fumaça na praça São Pedro, de outro estava um aparato para bloquear sinais de telefone.

Desta vez, o desafio será inédito.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.