Jamil Chade

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EUA viam em brasileiro oposição a conservadores no Vaticano, diz telegrama

Telegramas da diplomacia americana apontaram que o cardeal brasileiro Claudio Hummes era um nome forte para ser escolhido como o primeiro papa latino-americano da história e, em 2005, era considerado como uma aposta contra a ala mais conservadora da Santa Sé. O religioso faleceu em 2022.

Ao longo dos próximos dias, o UOL tratará documentos, telegramas e minutas de encontros que revelam como a Casa Branca e do Departamento de Estado não esconderam, ao longo de décadas, o seu interesse político pelo destino da Igreja e o que isso representaria para sua estratégia de política externa.

Prestes a iniciar um novo processo de escolha de sua liderança, a Igreja volta a ser tomada por pressões e cálculos políticos, principalmente diante do foco da extrema direita em interromper o domínio de progressistas na Santa Sé.

Em 18 de abril de 2005, um documento enviado pela embaixada dos EUA na Santa Sé para o Departamento de Estado, em Washington, traçava as apostas que o então governo de George W. Bush fazia em relação a quem ocuparia o trono de São Pedro depois da morte de João Paulo II.

Naquele momento, o escolhido foi Joseph Ratzinger, também destacado entre os diplomatas como um forte candidato.

Mas um dos focos da análise era o brasileiro Claudio Hummes, naquele momento arcebispo de São Paulo.

Eis como a diplomacia americana descreveu o religioso:

"Monge franciscano e pastor, Hummes nasceu filho de imigrantes alemães em Montenegro, Brasil, em 1934. Ele é bispo desde 1975 e foi transformado em cardeal em 2001. Hummes é membro da diretoria de vários departamentos do Vaticano, incluindo a Comissão para a América Latina. Quando era um jovem bispo, Hummes tinha a reputação de defensor ferrenho dos desfavorecidos, e assumiu um status mítico em suas batalhas com os generais da ditadura brasileira. Ele defendeu ativamente o Movimento dos Sem Terra (camponeses sem terra), argumentando que as pessoas deveriam ser incentivadas a se organizar para defender seus direitos. Nos últimos anos, ele adotou uma postura teológica mais tradicional e se distanciou da ação política, embora ainda lembre aos líderes do governo que a Igreja defende a propriedade privada, mas com "responsabilidade social".

Hummes pode ter a combinação certa de cautela doutrinária e engajamento social que os eleitores estão buscando. Hummes foi convidado a pregar os Exercícios Espirituais da Quaresma para o Papa João Paulo e para as autoridades seniores da Cúria em fevereiro de 2002 - um sinal tradicional de favorecimento papal. Gentil e de fala mansa, o arcebispo franciscano de São Paulo também pode ser teimosamente opinativo.

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Sua eleição seria um poderoso sinal afirmativo para os católicos do mundo em desenvolvimento de que eles têm um lugar central na Igreja.

Ainda que o telegrama trouxera mais de dez nomes de possíveis papas, o brasileiro aparecia com destaque, em especial na avaliação de quem poderia frear a continuação de uma linha mais dura dentro da Santa Sé.

"Apesar de uma semana de especulação na mídia sugerindo que o cardeal alemão e colaborador próximo de João Paulo II, Joseph Ratzinger, estava se aproximando de uma maioria de votos, parece que ele não tem apoio suficiente para alcançar os dois terços necessários, devido à forte oposição de facções que veem Ratzinger como muito rígido e ciumento das prerrogativas de Roma", disse.

"Algumas dessas forças parecem estar se unindo em torno do arcebispo aposentado de Milão, Cardeal Carlo Maria Martini, como um porta-estandarte para as votações iniciais que testarão a força dos diferentes grupos, embora não se espere que ele seja um candidato viável", alertou a diplomacia americana.

"Com base nesses resultados iniciais, espera-se que os cardeais nas votações subsequentes mudem para outros candidatos que reflitam os pontos de vista de Ratzinger ou Martini, mas que ofereçam maior esperança de obter apoio de outros grupos", disse.

"Os cardeais italianos Ruini ou Scola e o cardeal argentino Bergolio seriam adequados para o campo de Ratzinger, enquanto o arcebispo de Milão, cardeal Tettamanzi, ou o cardeal brasileiro Hummes poderiam obter o apoio dos grupos anti-Ratzinger", destacou.

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Na avaliação dos americanos, a América Latina abrigava 42% dos católicos do mundo e é o "segundo lar da Igreja depois da Europa".

"Com o declínio contínuo da vitalidade da Igreja na Europa, muitos latino-americanos acreditam que chegou a hora de um papa do mundo desenvolvido, onde a Igreja está crescendo e ativa, mas, ainda assim, enfrentando a concorrência de grupos evangélicos e trabalhando para enfrentar desafios sociais e econômicos assustadores", disse.

"Os cardeais latino-americanos nos disseram que sentem que este conclave poderia produzir o primeiro papa latino-americano, embora tenham sido cautelosos ao defender esse ponto de vista com veemência por medo de alienar os colegas não latinos", destacou a diplomacia americana.

"Claramente se a decisão sobre um papa fosse baseada somente em considerações regionais, um papa latino-americano seria uma escolha lógica para os eleitores pela poderosa mensagem que enviaria a esse bastião do catolicismo e à igreja mais ampla no mundo em desenvolvimento", ponderou.

"O conclave terá uma série de candidatos latino-americanos viáveis a serem considerados quando se reunirem em 18 de abril, mas esses candidatos terão que superar a sub-representação da região no Colégio de Cardeais, onde representam menos de 20% dos votos", completou.

No telegrama, os americanos também destacavam como outro latino-americano também seria uma opção para o Vaticano: Jorge Mario Bergoglio.

"Bergoglio exemplifica as virtudes do pastor sábio que muitos eleitores do valorizam. Observadores elogiaram sua humildade: ele relutou em aceitar honrarias ou ocupar altos cargos e vai de ônibus para o trabalho", disse.

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"O que pode contar contra ele é o fato de ser membro da ordem jesuíta. Alguns prelados seniores, especialmente os conservadores, suspeitam de uma tendência liberal na ordem, talvez mais pronunciada nos EUA, mas também presente em outros lugares", alertou.

"Diz-se que Bergoglio prefere a vida na Igreja local em oposição a uma existência burocrática nas estruturas eclesiásticas de Roma, mas, ao mesmo tempo, ele está disposto a servir nos vários comitês de supervisão do Vaticano. Isso poderia indicar uma capacidade de superar a divisão entre a cúria e a igreja local que divide o Colégio de Cardeais Eleitores, tornando-o um bom candidato de compromisso", completou.

Bergoglio não venceu em 2005. Mas, em 2013, foi a escolha do conclave, apoiado pelo cardeal Claudio Hummes. No momento de sua eleição, o brasileiro sussurrou ao argentino: "não se esqueça dos pobres".

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