Jamil Chade

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Opinião

Com camisa vermelha, daremos nosso patrimônio nacional para extrema direita

Sou contra a invenção de uma camisa vermelha para a seleção, mesmo que hoje sinta um profundo mal-estar diante daquela que um dia foi quase considerada como nossa segunda pele.

Estabelecer uma nova identificação para a seleção será o equivalente a dar um presente para a extrema direita, que sem dúvida sequestrou nossos símbolos. A camisa não é a única que vive atualmente na condição de refém. Há uma operação deliberada para sequestrar termos como liberdade, fé e até direitos humanos.

Cabe a nós entoar pelas arquibancadas da democracia nossa resistência.

Desde o ano 2000, percorri mais de 70 países, viajei com papas, chefes de Estado, secretários-gerais das Nações Unidas, visitei campos de refugiados, acompanhei resgates de vítimas de conflitos, apertei a mão de criminosos de guerra e de heróis. Mas em praticamente todas essas ocasiões, nas diferentes culturas, religiões e línguas que conheci, sempre que eu me apresentava como brasileiro, meu interlocutor abria um sorriso e fazia um comentário sobre a camisa amarela mais conhecida do planeta.

Ela foi meu passaporte, meu cartão de visitas e a chave para tantas portas aparentemente impenetráveis.

Lembro-me de estar no interior da Tanzânia numa reportagem sobre o fato de que remédios essenciais não chegavam a uma população negligenciada de seus direitos. Mas, num armazém miserável, um pôster na parede mostrava, com um orgulho surreal, a imagem de Cafu levantando a taça da Copa de 2002. Como é que aquele pôster tinha ido parar ali, se nem mesmo existiam voos ou estradas asfaltadas até o local?

Em outra ocasião, fui até a fronteira entre a Jordânia e o Iraque, em plena guerra pela derrubada de Saddam Hussein em 2003. Famílias inteiras haviam deixado o país por causa dos bombardeios e estavam presas numa terra de ninguém.

A areia deixava o ar, e tudo que se podia tocar, com uma aparência confusa. Até que vi, entre uma tenda de refugiado e outra, um garoto de no máximo quatro anos vestido inteiramente com o uniforme da seleção brasileira. De onde havia surgido aquilo? O pai, ao saber que eu era brasileiro, veio me apresentar o menino. "Esse é meu filho: Ahmadinho."

Fui enviado aos rincões mais pobres da Etiópia, e me deparei com um time inteiro de garotos que não tinha ônibus para ir aos locais das partidas que disputavam, não tinha treinador e apenas contava com uma bola. Mas todos usavam a mesma camisa: 10, de Ronaldinho. Parecia uma miragem.

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Nesse périplo pelo mundo, um fato sempre me surpreendeu: como nós, brasileiros, somos identificados pela nossa Seleção.

Sim, trata-se de uma visão simplória, injusta, estereotipada. O Brasil é muito mais que isso. Mas essa realidade também revela que aquela camisa amarela faz parte de nossa identidade e vai muito além de representar um time de futebol. Faz parte de quem somos no mundo, gostemos ou não.

O problema é que esse bem cultural, essa Seleção que se diz nacional, que usa nossas cores, canta o nosso hino e diz nos representar, foi indevidamente apropriada por um grupo incapaz de ver o outro com a generosidade que somos recebidos.

Na pátria de chuteiras, não vejo sentido em abandonar um de nossos símbolos nacionais e convidar os torcedores para que saiam às ruas para queimar a camisa amarela. Isso seria um atalho míope.

O que precisamos é reconquista-la para que volte a ser usada com orgulho. Que se transforme num símbolo de resistência, da diversidade e até dos direitos humanos.

Não da morte.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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