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José Luiz Portella

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Entre Lula e Bolsonaro, na sexta-feira 13, Brasil esboça aurora tropical

Amanhecer é visto a partir da zona norte da cidade de São Paulo; nascer do Sol - WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO
Amanhecer é visto a partir da zona norte da cidade de São Paulo; nascer do Sol Imagem: WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

14/05/2022 08h09

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O ser humano vive do futuro. Da esperança de que o devir abrigará seus sonhos mais recônditos. Seus sonhos mais loucos, no sentido de impossíveis, como cantavam as Frenéticas.

É a ideia do que virá, a infinita expectativa de que o futuro será melhor, que nos ergue da cama, para mais um dia.

A aurora é um sinal de que a construção do ideal vai começar.

Na sexta-feira ensolarada, a advogada, filha de um mecânico e de uma dona de casa tradicional, surgiu toda de vermelho, um vestido rubro brilhante bom-tom, que combinava energia e discrição.

Nem tão vermelho, que se tornasse exibido, "cheguei", nem a sobriedade avinhada, que viesse a conter o entusiasmo de um dia ensolarado, após dias de frio de outono.

Ela é uma advogada, que saiu de uma travessa da Lapa simples de classe média-média, e se moveu para a aristocracia do Alto de Pinheiros, por meio de seu trabalho e da sua iniciativa.

Nasceu quando o sonho brasileiro já levava quase uma década de anos dourados, entre os decênios de 1950 e 1980, quando o Brasil foi um dos países que mais cresceu no mundo, e os chineses aqui aportavam para saber qual era o segredo da expansão e do desenvolvimento, que emprestavam vida e futuro ao Brasil.

Nasceu durante um governo que instigava o desenvolvimento, percorrendo 50 anos em 5. Com um sorriso otimista na face.

O Brasil já havia conquistado sua visibilidade mundial, seu passaporte para sair do "viralatismo", em 58, na Suécia, onde a aurora da luta pela desigualdade permite uma esperança, ainda que tardia.

Mergulhei profundamente em um passado, onde acreditava num alvorecer avassalador.

Horas de conversa em um restaurante, revisando o passado, episódio a episódio, como a conversa que Mario Vargas Llosa teve na Catedral, traçávamos a trajetória de dois brasileiros, que já caminharam juntos, fabulando o futuro. O sonho da realização. Fomos contando um para o outro, o que vivéramos.

Agora, nessa sexta-feira, 40 anos nesta manhã, ambos, em grande parte realizados, usufruímos da alegria de duas pessoas, que puderam ter um futuro no país do Futuro, e sofri a tristeza de constatar que aqueles jovens, que fôramos 40 anos atrás, sentados ali no restaurante, não podiam crer no mesmo destino.

A pergunta era: o que fazer para não nos enredarmos nesta armadilha?

Entre as lembranças do pretérito, surgia uma fina agonia do alçapão de estarmos entre dois futuros, que soam como uma emboscada: Lula e Bolsonaro.

Um traz o travo acre de um sonho, que se derreteu, envelheceu, sem curar os vícios, o outro a cilada dos anos de chumbo. Onde choraram Marias e Clarisses, no solo do Brasil.

As nuvens voltaram a se carregar.

A tarde não caía como um viaduto, nem havia bêbado trajando luto, ela se erguia ensolarada, embora prometesse um crepúsculo de inverno, no outono.

Percebi que tinha vontade, mas não possuía a resposta.

Primeiro, asilei-me na Universidade de São Paulo, onde busco afogar minhas agonias intelectuais.

Deparei-me com professores falando de pesquisas, mas sem respostas para o dilema em curso.

Depois, fui-me refugiar numa casa histórica. Que assistiu o nascer da candidatura ao senado, de um futuro presidente da República, e outras reuniões que criaram os comícios das Diretas, Já.

A casa do Zé Gregori.

Pensei, ele do alto de seus 91 anos, e tendo navegado do tenentismo ao Real, enfrentando o regime militar, a construção de um sonho que palmilhamos juntos, a vivermos suas remotas conquistas e derrotas.

Lá estaria alguma resposta.

Encontrei-o na mesma sala que combinaram-se tantos planos, o impulso da batalhas de Montoro em busca da democratização e da descentralização, do respeito à dignidade humana, que Montoro ensinava, contudo, afundado no sofá bege, ele me indagou, num certo desafio: Portella, como podemos sair dessa arapuca?

Ele não desejava Bolsonaro nem o PT. Na mesma trilha da advogada que vencera pelos seus méritos.

Procurei conservar a alegria de reencontrar um grande amigo, mas senti a mesma incógnita, que açoita pelo menos 40% dos brasileiros.

Pela fresta do vidro no alto da parede, percebi que a luz sumia e o vento esfriara bastante. A massa polar chegara.

Ele me questionava sobre o que fora procurar, a busca do tempo perdido, entre o fogo do crescimento dos anos dourados e as décadas perdidas dos anos oitentas, e agora, pior de 2011 a 2020. Quando o país não cresceu, ou seja decresceu.

Foi um momento complicado, onde minha alma vagou entre a lembrança de Maria Helena, uma grande companheira de trabalho, a esposa do Zé Gregori que partiu, e aquele clima febril dos palanques das Diretas, que tive a felicidade de poder compartilhar.

Mas, uma dor assim pungente, não há de ser impunemente.

Na trajetória da advogada, que se fez pelos seus méritos, no sorriso do neto de Gregori, na discussão dos professores e professoras da USP sobre a melhoria da qualidade de vida, medida por pesquisa, quando existem políticas públicas ativas juntando-se à vida das pessoas, na firmeza do Zé, quando alçou sua voz contra a perda dos direitos humanos, e na figura daquela nissei que também almoçou comigo, com olhos apertados sorridentes, como símbolo dos imigrantes que propulsionaram o Brasil, chegando com a roupa do corpo, como o pai judeu de um amigo que foi expulso do Egito, tive uma faísca cálida de certeza.

O Brasil pode proporcionar a saída para sua própria distopia.

As pessoas são o ativo. Um ativo, agora deprimido, pela tristeza do cenário, mas resiliente como o nordestino de Euclides da Cunha. Antes de tudo, somos fortes. Talvez esteja tocado só por uma esperança, talvez, não.

Quando retornei ao carro, já não sentia tanto o frio.

A nissei olhava a praça em que outro Paulo, o Paulinho, um nissei que combina pai japonês e mãe piauiense, uma mistura bem brasileira de de força com coragem, caminha com o aristocrata Marcelo Borg, procurando soluções. Não as encontraram ainda.

Tinha uma tépida convicção de que uma aurora tropical pode chegar.

Não sei como, por ora, mas vai chegar.

As pessoas apressadas nas ruas, sem saber o porquê, me deram tal visão.

Sorria, mesmo quando seu coração estiver machucado ( Smile de Chaplin, John Turner e Geoffrey Parsons). Ouça.

Eu apenas sorri.