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Josias de Souza

Bolsonaro cria crise e bolsonarismo ataca jornalista

TV Cultura
Imagem: TV Cultura

Colunista do UOL

27/02/2020 05h30

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Quando se está numa roda de conversa em Brasília e alguém menciona a penúltima crise criada por Jair Bolsonaro, é inútil mudar de assunto. Pode-se, no máximo, mudar de crise.

Bolsonaro atingiu a autossuficiência na fabricação de discórdia. Ele mesmo projeta a crise, ele mesmo fornece material para as manchetes, ele mesmo esgrime a tese de mal-entendido, ele mesmo culpa a imprensa.

Na crise atual, o presidente atiçou a sua milícia digital para transferir suas culpas para a repórter Vera Magalhães. Foi ela quem divulgou pela primeira vez, no Estadão, a notícia de que o presidente compartilhara vídeo convocando o asfalto para roncar num ato anti-Congresso em 15 de março.

"O que leva parte da imprensa a mentir, deturpar, caluniar... enfim, atentar contra o Brasil 24 horas por dia?", indagou Bolsonaro nas redes sociais. "Abstinência de verba ou medo da verdade?"

Horas antes, o presidente admitira ter transmitido o vídeo via WhatsApp, em "caráter pessoal". Como de hábito, Bolsonaro fez pose de vítima escorando-se na Bíblia.

O presidente evocou uma passagem do livro do profeta Jeremias (1:19): "E pelejarão contra ti, mas não prevalecerão contra ti, porque eu sou contigo, para te livrar, diz o Senhor."

Ao cinismo de Bolsonaro adicionou-se uma tentativa de linchamento virtual. A repórter foi hostilizada pelo bolsonarismo nas redes sociais de forma implacável. A cruzada envolveu da divulgação de dados pessoais à criação de um perfil falso em uma rede social.

Vera não se deu por achada. Levou às redes declaração feita por Bolsonaro em 2018: "Se caísse uma bomba H no Parlamento, pode ter certeza, haveria festa no Brasil." Numa evidência de que quem sai aos seus não endireita, Eduardo Bolsonaro achou que seria uma boa ideia associar-se à artilharia.

Expressando-se num idioma muito parecido com o português, o filho Zero Três de Bolsonaro o anotou o seguinte no Twitter:

"Esse é o abismo que separa não o presidente de você, Vera. Mas sim a bolha em que você vive da percepção da população em geral Se houvesse uma bomba H no Congresso você realmente acha que o povo choraria? Ou você só faz isso p TENTAR criar atrito entre o presidente e o Congresso?"

Vera respondeu: "Eu acho que se houver uma bomba H no Congresso, do qual o senhor e seu irmão fazem parte, será um ato terrorista. E se o povo não se preocupar com isso, a democracia acabará. A mesma que o seu pai jurou respeitar. Sim, o senhor está certo: há um abismo a nos separar."

Bolsonaro e sua prole ainda não notaram. Mas a imprensa não é parte da crise, apenas se alimenta dela. Os repórteres levam à gôndola a mercadoria que o presidente fabrica. Se o inquilino do Planalto mudar de ramo, substituindo crises por soluções, os repórteres mudarão de assunto instantaneamente.

Uma das principais características de gente como Bolsonaro é a transferência de responsabilidades. O capitão não se enxerga como um problema. O mundo ao redor é que é o problema dele.

A aversão de Bolsonaro à imprensa que o imprensa revela que o personagem, beneficiário direto da democracia, não assimilou após 28 anos de mandato parlamentar e 14 meses de exercício da Presidência noções básicas de civilidade.

Decorridas mais de três décadas do fim de uma ditadura que se dizia proclamada em nome de ideais democráticos, o capitão ainda supõe que a sociedade brasileira está disposta a aceitar uma democracia de fachada, isenta de contraditório. Outros tiveram a mesma ilusão. Deram-se mal.