Topo

Josias de Souza

Supremacia do STF equilibra-se sobre pés de barro

                                MARCELLO CASAL/AGÊNCIA BRASIL
Imagem: MARCELLO CASAL/AGÊNCIA BRASIL

Colunista do UOL

04/06/2020 06h04

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Acossado por Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal sofre uma transformação. Até outro dia, não havia um Supremo, mas quatorze: os onze ministros, as duas turmas e o plenário. Súbito, a animosidade do capitão levou as togas a estreitarem suas inimizades. Ainda não há unanimidade, mas esboça-se uma maioria incomum. Deseja-se robustecer a resposta da Corte ao Planalto.

O problema é que, no contencioso com Bolsonaro, a supremacia do Supremo equilibra-se sobre pés de barro. O inquérito que perscruta a engrenagem de notícias falsas do bolsonarismo nasceu torto. Tem aparência de gambiarra. Em sessão marcada para a próxima quarta-feira (10), o plenário tentará endireitá-lo. A imagem da Corte, já meio tisnada, pode sofrer um curto-circuito.

Em março do ano passado. Dias Toffoli surpreendeu o país e os colegas ao se autoconceder poderes inéditos. Abriu por conta própria, sem a participação do Ministério Público Federal, um inquérito para investigar ataques e ameaças aos ministros do Supremo e seus familiares. Escolheu para relatar o procedimento, sem sorteio, o colega Alexandre de Moraes. Decretou o sigilo das investigações.

Toffoli anunciou a extravagância numa sessão de julgamento. Sob os holofotes da TV Justiça e de toda a mídia, buscava o fato consumado. Se tivesse consultado seus pares a portas fechadas, em sessão administrativa, dificilmente teria obtido apoio, como realçou à época Marco Aurélio Mello, crítico contumaz da iniciativa.

Falando desde a mesa da presidência da Corte, Toffoli declarou que o inquérito não visava coibir críticas da imprensa. Uma das primeiras providências do relator Moraes, escolhido a dedo, foi censurar a revista eletrônica Crusoé, retirando do ar notícia que grudava Toffoli à logomarca da Odebrecht —a medida seria revogada posteriormente, sob fortes críticas.

Infâmias, injúrias e difamações contra o Supremo ou seus ministros precisam ser apuradas e punidas. Mas a instância máxima do Judiciário não está isenta do cumprimento das regras.

O regimento interno da Corte concede ao seu presidente o direito de defendê-la contra eventuais "infrações à lei penal ocorridas na sede ou dependência do tribunal".

Qualquer brasileiro alfabetizado compreenderia que Toffoli, como presidente do Supremo, tinha respaldo regimental para exercer o poder de polícia para coibir eventuais crimes praticados nas dependências da Corte.

Para investigações fora do prédio, não restaria a Toffoli senão enviar à Procuradoria-Geral da República um pedido de abertura de inquérito. Dificilmente ele deixaria de ser atendido.

O partido Rede Sustentabilidade recorreu. O recurso foi distribuído por sorteio a Edson Fachin. Em ofício a Fachin, Toffoli saiu-se com uma explicação inusitada. Nela, alegou que os ministros representam o Supremo onde quer que estejam. Com isso, estendeu os limites da sede da Corte a todo país. Nessa interpretação, a sede do Supremo passou a ser o Brasil.

Raquel Dodge, a então procuradora-geral da República, tentou arquivar o inquérito. Toffoli e Moraes deram de ombros. Fachin pediu que o recurso da Rede fosse levado ao plenário. Toffoli engavetou. Desde então, a gambiarra virou um inquérito multiuso.

Moraes investiga quem bem entende, inclusive brasileiros que não dispõem do foro privilegiado do Supremo. Não há restrição territorial nem delimitação do objeto da investigação. Nem sinal de prazo para o término do inquérito. Tudo submetido ao mais estrito sigilo. Coisa jamais vista no Supremo.

É no âmbito desse inquérito que a máquina de notícias falsas do bolsonarismo está sendo varejada. Inclui parlamentares, ativistas e empresários. Bolsonaro declara-se convencido de que o inquérito logo chegará a dois de seus filhos: Carlos e Eduardo Bolsonaro. Que serão usados como "escada" para chegar à sua Presidência.

Se o recurso relatado por Fachin tivesse chegado ao plenário no ano passado, seriam grandes, muito grandes, enormes as chances de a maioria dos ministros enviar para o arquivo o inquérito maroto de Toffoli. Hoje, a maioria dos ministros cogita manter a investigação em pé, endireitando-a. A operação exala um cheiro de queimado.