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Josias de Souza

Desafio de Fux é defender o STF de si mesmo

Marcelo Camargo / Agência Brasil
Imagem: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Colunista do UOL

10/09/2020 05h24

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O principal desafio de Luiz Fux é restaurar a supremacia do Supremo Tribunal Federal. Para atingir o objetivo, o substituto de Dias Toffoli precisa defender a Suprema Corte de si mesma.

A instância máxima do Judiciário vive uma fase de raro desprestígio. Deve-se o fenômeno não aos ataques externos, mas ao descontrole interno. É difícil para o Supremo ter uma relação saudável com a sociedade se os próprios ministros não respeitam uns aos outros.

Ex-presidente do Supremo, o constitucionalista Carlos Ayres Britto costuma dizer que, numa democracia, ninguém pode impedir a imprensa de falar primeiro e a Suprema Corte de falar por último. Verdade. O problema é que a voz do Supremo tornou-se desconexa.

Oito em cada dez decisões do Supremo são tomadas individualmente. Isso faz com que existam 12 supremos —os 11 ministros mais o plenário. Não são raras as vezes em que ministros decidem na contramão do colegiado.

Dizer que o Supremo frequentemente desfaz o que o Supremo fez é pouco para traduzir a atmosfera de balbúrdia. Há também as decisões divergentes tomadas em duas turmas —a Primeira e a Segunda. Uma, chamada de Câmara de Gás, é adepta da tranca. Outra, apelidada de Jardim do Éden, prefere abrir as celas.

O Supremo existe para harmonizar conflitos, dissolver desavenças. Operando em desarmonia, produz o oposto: insegurança jurídica. Diz-se que, sob Toffoli, as togas já não discutem diante das câmeras. Na verdade, algumas nem se falam.

Fux é diferente de Toffoli. Para ficar na distinção mais óbvia: um é lavajatista; outro tem ojeriza à "República de Curitiba. Mas o fato de serem diferentes não faz a menor diferença no exercício da presidência. Por quê? Simples: O Supremo não respeita hierarquia.

Ter isso em mente é fundamental para compreender o funcionamento da Corte. A figura do presidente do Supremo, que os mais desavisados poderiam confundir com a de um chefe, é, na verdade, um mero coordenador dos trabalhos.

Fux "comandará" o Supremo no biênio 2020-2022 não porque seus pares o consideram mais capaz. Foi "eleito" presidente em 25 de junho porque chegou a vez dele no sistema de rodízio.

Sabe-se desde logo que Rosa Weber, "eleita" vice-presidente, herdará a poltrona de Fux daqui a dois anos. Nesse jogo jogado, cabe ao presidente organizar a pauta de julgamentos do plenário e tentar impor um tratamento civilizado aos conflitos.

Em condições normais, o Supremo deveria ser um lugar onde pessoas que pensam diferente tratam-se compulsoriamente como iguais. Todos são —ou deveriam ser— efetivamente iguais ali.

A opinião de Fux vale tanto quanto a de qualquer um dos outros dez ministros. Significa dizer que a pior ilusão que pode acometer um presidente do Supremo é a ilusão de que preside.

Antes mesmo de assumir a direção, Fux se autoimpôs um itinerário com quatro destinos: proteção dos direitos fundamentais, defesa do meio ambiente, combate à corrupção e causas econômicas. Corre o risco de ser abalroado pelas circunstâncias.

Fora da presidência, Toffoli passará a ocupar um assento na Primeira Turma. Articula-se sua transferência para a Segunda Turma, responsável pela Lava Jato. Ele ocuparia a cadeira de Celso de Mello, que se aposenta em novembro.

Num colegiado de cinco ministros, Toffoli ornamentaria a maioria anti-Lava Jato na companhia de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Edson Fachin e Cármen Lúcia comporiam a cena como votos vencidos.

Hoje, com Celso de Mello em licença médica, Fachin e Cármen colecionam na Segunda Turma empates com aroma de derrota. O placar é sempre de 2 a 2. Algo que favorece os réus (in dubio pro reo). Produzem-se rotineiramente solturas, absolvições e anulações de sentença.

A Segundona prepara o terreno para o julgamento do pedido de suspeição formulado pela defesa de Lula contra Sergio Moro. Confirmando-se a presença de Toffoli, esboça-se um placar de 3 a 2 a favor da anulação da sentença de Moro no caso do tríplex.

Assim, sob a presidência do lavajatista Fux, o Supremo pode abrir caminho para a lavagem da ficha suja de Lula, habilitando-o a disputar o Planalto em 2022. Tudo isso com o voto favorável de Toffoli, ex-advogado do PT e ex-advogado-geral da União do governo Lula.

A desconstituição de sentenças da Lava Jato deixa no ar uma série de indagações que intrigam os brasileiros que foram às ruas pela restauração da moralidade.

O que fazer com as delações? Como tratar as provas? A quem o Estado devolverá o dinheiro amealhado na venda do tríplex? Para quem devolver os mais de R$ 4 bilhões recuperados?

O Supremo especializa-se em caminhar à moda do caranguejo: para trás. Revogou a regra que permitia a prisão de condenados em segunda instância depois de avalizar o encarceramento quatro vezes. Ao restringir a abrangência do foro privilegiado, a Corte decidira que só julgaria parlamentares encrencados se o crime tivesse sido cometido durante o mandato e estivessem a ele relacionados.

Para proteger o senador José Serra, Gilmar Mendes puxou de volta para o Supremo uma ação que corria na Justiça Eleitoral de São Paulo. Nada a ver com mandato de Serra no Senado. Envolve promiscuidade financeira da época em que Serra era governador.

A restauração do foro privilegiado não faz nexo. Entretanto, num Supremo isento de supremacia, um aliado político pilhado em ilegalidades é enviado para a primeira instância da Justiça Eleitoral no pressuposto de que o processo não caminhará. Se andar, restaura-se o foro e aguarda-se a prescrição.

O vaivém atraiu muitas críticas. Que Toffoli decidiu tratar como ataques à instituição. Inaugurou por conta própria um inquérito sigiloso para identificar e punir quem atira rojões contra a Suprema Corte —rojões reais e metafóricos.

A investigação deveria ter sido requisitada à Procuradoria. Mas o flerte com a ilegalidade foi avalizado pelo plenário do Supremo, com o voto favorável de Fux. O enquadramento dos críticos não resolverá o problema se o Supremo continuar conspirando contra o Supremo.