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Josias de Souza

Bolsonaro põe 'autonomia' da Anvisa entre aspas

Colunista do UOL

10/11/2020 13h04

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Jair Bolsonaro condenou a "autonomia" da Anvisa, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a viver aprisionada entre aspas. Fez isso ao celebrar a suspensão dos testes da vacina Coronavac como uma vitória pessoal na guerra eleitoral que trava com João Doria. Em resposta a um seguidor, o presidente anotou no Facebook: "Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Dória quer obrigar todos os paulistanos a tomá-la. Mais uma vez Jair Bolsonaro ganha."

A Anvisa paralisou os estudos clínicos sobre a vacina do laboratório chinês Sinovac, realizados no Brasil pelo Instituto Butantan, porque foi informada a respeito de um "evento adverso grave" ocorrido com um dos milhares de voluntários que se submetem aos testes. Ganhou o noticiário a informação de que houve uma morte. Foi suicídio, informa laudo do IML.

Não há confirmação de que esse "evento" tenha relação com a vacina. Ao contrário. O Butantan assegura que os dados científicos repassados à Anvisa demonstram que o imunizante é inocente. Mas Bolsonaro dá de barato que a "vacina chinesa do Doria", como ele se refere à coronavac, mata e aleija.

Dimas Covas, diretor do Butantan, disse ter "certeza" de que o problema detectado não tem relação com a vacina. "É impossível", ele declarou. Os dados clínicos, protegidos por sigilo, não podem ser divulgados.

Acorrentado ao mesmo compromisso de sigilo, João Gabardo, chefe do comitê do governo de São Paulo que gerencia o combate ao coronavírus, afirmou aos jornalistas: "Se vocês pudessem ter acesso às informações que temos em relação a esse caso, poderiam identificar quão injusta está sendo essa suspensão da continuidade dos estudos da fase três dessa vacina desenvolvida pelo Butantan."

Paralisações como a que foi imposta pela Anvisa aos testes da coronavac são normais nesse tipo de estudo. O que foge à normalidade é a politização do tema. Ao arrastar a testagem de uma vacina para o ringue de 2022, Bolsonaro transforma sua obsessão pela reeleição num processo de desmoralização da "autonomia" da Anvisa.

Suspensão semelhante já havia ocorrido com a vacina desenvolvida pela universidade de Oxford, em parceria com o laboratório AstraZeneca. Nesse caso, os testes são realizados no Brasil pela Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde. Bolsonaro não deu um pio, pois seu governo investiu dinheiro do contribuinte nessa vacina. Checadas as dúvidas, o estudo foi retomado. Sem politicagens.

Bolsonaro declarou guerra à "vacina chinesa do Doria" no final de outubro. Humilhou o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, forçando-o a cancelar protocolo que assinara com o Butantan para aquisição de 46 milhões de doses da coronavac.

"Quem está com o relógio das vacinas contra a Covid-19 na mão é a Anvisa", disse na ocasião o governador Renato Casagrande, do Espírito Santo. "A pergunta que temos de responder é: a agência terá ou não independência para analisar as vacinas tecnicamente?"

A dúvida de Casagrande é compartilhada por outros 23 governadores que, como ele, participaram da reunião em que Pazuello informou sobre a intenção de incluir a coronavac no rol de opções do programa nacional de vacinação.

O Brasil precisará de mais de uma vacina para imunizar sua população contra a covid. A Anvisa monitora os testes de quatro. Entre elas "a chinesa do Doria" e a britânica do Bolsonaro. "Para nós, não importa de onde vem a vacina", disse no mês passado o presidente da Anvisa, contra-almirante Antonio Barra Torres.

Ironicamente, Barra Torres, que presidia a Anvisa interinamente desde dezembro de 2019, foi efetivado pelo Senado na presidência da agência no mesmo dia em que Pazuello firmou a parceria com o Butantan, aquela que Bolsonaro mandou anular. Prometeu aos senadores que faria uma "gestão independente."

Há quase oito meses, em 15 de março, Bolsonaro deu de ombros para as recomendações de distanciamento social ao participar de um protesto defronte do Planalto. Barra Torres, então chefe interino da Anvisa, fez companhia ao presidente.

A certa altura, o mandachuva da Anvisa atuou como cinegrafista, filmando Bolsonaro enquanto o presidente distribuía apertos de mão aos seus devotos. A sintonia entre o presidente e o personagem que prometeu agir com "autonomia" na Anvisa parecia intensa.

Continua boiando na atmosfera infectada de Brasília a pergunta do governador Casagrande: "A agência terá ou não independência para analisar as vacinas tecnicamente?" A celebração do inquilino do Planalto —"Mais uma vez Jair Bolsonaro ganha"— fez surgir uma segunda interrogação: Ganha o quê?