Indústria encosta negócios na pauta antirracista
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O melhor momento para realizar uma mudança é antes que ela seja necessária. O Carrefour se deu conta disso tarde demais. Frequenta a conjuntura como uma logomarca hemorrágica. Mas coisas sensatas também acontecem. A inépcia da rede de supermercados tornou-se uma oportunidade que seus fornecedores aproveitam.
Onze grandes indústrias de bens de consumo, todas presentes nas gôndolas do Carrefour, enxergaram no assassinato de João Alberto Silveira Freitas, o Nego Beto, um ensejo para assumir o compromisso público de combater o racismo. Decidiram transformar a equidade racial num ativo empresarial.
A exemplo do sapo de Guimarães Rosa, não é por boniteza, mas por precisão que as indústrias decidiram dar os seus pulos, encostando os negócios na agenda antirracista. Pelas contas do IBGE, 56,10% da população brasileira se declara preta ou parda.
Significa dizer que algo como 109 milhões de consumidores ostentam a mesma tonalidade de pele do Nego Beto, o cliente que foi espancado até a morte na garagem de uma loja do Carrefour, em Porto Alegre.
Enrolaram-se na bandeira antirracismo gigantes do porte de Coca-Cola, Danone, BRF, General Mills, Heineken, Kellogg's, L'Oréal, Mars, Mondeléz, Nestlé e Pepsico. Juntas, empregam no Brasil mais de 235 mil pessoas. Reconheceram por escrito uma obviedade que Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão ignoram: há, sim, racismo no Brasil.
Anotaram uma trivialidade: "Ocorrem diariamente atitudes que perpetuam o preconceito, a exclusão, as desigualdades e a violência." Assumiram dois compromissos: divulgar um plano de ação e prestar contas regularmente de sua implementação.
Execuções como a que ocorreu no Carrefour de Porto Alegre não acontecem por acaso. Mesmo descontando-se a estupidez humana, vigias terceirizados de um supermercado não agiriam com tamanho descaso pela vida e destemor pelas consequências dos seus atos se não soubessem que o seu descaso é compartilhado.
Sabiam que estavam sendo filmados. E levaram a truculência às últimas inconsequências. É como se eles se sentissem implicitamente autorizados. Essa autorização tácita à brutalidade ocorre corriqueiramente no Brasil. E atinge majoritariamente aqueles que o general Mourão chama de "cidadãos de cor".
O comerciante encomenda a morte do pivete incômodo. O comandante avalia que a punição clandestina é necessária, já que os tribunais não dão conta do serviço; o cidadão dito de bem acredita que a polícia e o vigia do supermercado —que em muitos casos são a mesma pessoa— têm que matar mesmo, para que ele possa andar tranquilo pelas ruas e realizar as suas compras.
Num ambiente assim, é louvável que grandes empresas se juntem para informar que não concordam com a brutalização que leva uma parte da sociedade a ser tratada como uma excrescência indesejável e descartável. Espera-se que o plano de ação seja vistoso e sua execução inspiradora.
Desde Gilberto Freyre que a miscigenação é vista como um traço positivo da formação brasileira. De fato, a mistura enriqueceu a cultura popular, beneficiária da confluência de três tradições. Mas não serve como prova da inexistência de racismo no Brasil, como alega Bolsonaro. No máximo serve como evidência de que o brasileiro racista é um sujeito que jamais mandou examinar sua árvore genealógica.
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