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Josias de Souza

Guedes fala e se zanga, mas não gosta de ouvir

Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

26/11/2020 03h14

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O ministro da Economia, Paulo Guedes, zangou-se com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Diante da suspeita generalizada de que a responsabilidade fiscal pode ser substituída pelo populismo eleitoral, Campos Neto realçou a necessidade de "conquistar credibilidade com a continuação das reformas e com um plano que indique e dê clara percepção para os investidores de que o país está preocupado com a trajetória da dívida" pública. Declaração de freira carmelita, se comparada à retórica tóxica do cardeal da economia.

Paulo Guedes já acusou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de se meter num conluio com legendas de esquerda para "interditar as privatizações". Chamou o colega do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, de "ministro fura-teto", insinuando que ele arrasta Bolsonaro para uma "zona de impeachment". Esculachou no atacado os servidores públicos, qualificando-os de "parasitas". Celebrou a alta do dólar porque acabaria a "festa" de "empregada doméstica indo para a Disneylândia."

Como diria o próprio Guedes, "crescem em bola de neve" as evidências de que a agenda liberal do governo empacou. Campos Neto falou num evento para operadores do mercado. Passaria a impressão de viver no mundo da Lua se não dissesse o que disse: "Há uma percepção de que nós não retornaríamos para uma disciplina fiscal, de que não estaríamos dentro do teto de gastos, de que não cuidaríamos da trajetória da dívida. Esse é o ponto que fica. Talvez o ponto chave da parte macroeconômica do Brasil, hoje, é ganhar credibilidade..."

Embora o colega de governo não tenha mencionado o seu nome, o ministro vestiu a carapuça. Apertado pelos repórteres, Guedes foi à jugular: "O presidente Campos Neto sabe qual é o plano. Se ele tiver um plano melhor, peça a ele... Pergunta a ele qual o plano dele para recuperar a credibilidade. O plano nós já sabemos qual é, nós já temos."

Misturando interrogações com intenções, Guedes soou escalafobético: "Você acha que nós queremos privatizar ou estatizar empresa? Abrir economia ou fechar economia? Qualquer pessoa sabe qual o nosso plano." Súbito, o ministro deslizou da economia para a ideologia: "Quem tiver sentindo falta de um plano econômico quinquenal, dá um pulinho ali na Venezuela, na Argentina. Ali está cheio de plano. O nosso plano é transformar a economia brasileira numa economia de mercado."

Os planos de Guedes, de fato, são conhecidos. O problema é que a maioria deles ainda não passa do estágio de prioridade retórica. Declarou que zeraria o déficit orçamentário no primeiro ano de governo. Lorota. Acabaria com subsídios. Garganta. Daria uma facada no Sistema S. Gogó. Coletaria mais de R$ 1 trilhão com a venda de estatais e imóveis públicos? Conversa mole. "Vamos desindexar, desvincular e desobrigar todas as despesas de todos os entes federativos". Megalomania.

Depois da reforma da Previdência, seria aprovada, ainda no segundo semestre de 2019, a emenda constitucional do pacto federativo. Nada. O governo enviaria ao Congresso uma proposta de reforma tributária. Com um ano de atraso, Guedes produziu um projeto de junção do PIS e Cofins.

Guedes chama de reforma administrativa uma arremedo magro e tardio que Bolsonaro relutou em enviar ao Legislativo. Reconheceu que o presidente impediu que fossem atingidos os atuais servidores. Mas disse que Bolsonaro autorizou a mexer "profundamente" nas regras do funcionalismo do futuro. Se autorizou, a equipe econômica não aproveitou, pois deixou de fora da reforma os militares e as carreiras de elite do serviço público —juízes , procuradores e promotores, por exemplo.

Há dois meses e meio, Guedes previu uma tramitação legislativa "suave" para a versão lipoaspirada da reforma administrativa. A coisa aconteceria "ainda neste ano." Estimou em R$ 300 bilhões a economia que seria obtida em dez anos. Quem acreditou fez papel de bobo. A garganta do ministro não orna com os fatos. Promete mais do que entrega. O grosso das reformas deslizou para 2021. Quiçá para 2022. Ou para as calendas gregas.

Escaldado, Guedes passou a incluir o Congresso na sua equação. "Quem dá o timing é a política", ele costuma dizer. Trata-se de uma meia verdade. E o perigo da meia verdade é o sujeito privilegiar a metade que é mentira. Não é que o ministro da Economia não queira privatizar à larga e reformar profundamente o estado. A questão é que Jair Bolsonaro não parece desejar as mesmas coisas.

Na reforma da Previdência, a única grande mexida que saiu do papel, o presidente não interveio senão para esvaziar a proposta, protegendo as corporações de sua predileção. Não se ouve de Bolsonaro um pio em defesa da venda de estatais. O capitão não move um dedo pela agenda liberal do seu ministro. Não há vestígio de mobilização da tropa governista no Congresso. Ao contrário. Diante da ambiguidade do inquilino do Planalto, seus aliados se sentem à vontade para frazer corpo mole.

Bolsonaro chegou ao Planalto com duas bolas na marca do pênalti da popularidade: a Lava Jato e a retomada do crescimento da economia. Verificou-se que o apoio à cruzada anticorrupção era de vidro e se quebrou. Guedes entregou em 2019, um ano pré-pandemia, o pibinho de 1,1%. No momento, Bolsonaro mantém uma improdutiva parceria com o centrão. Há muito mais "toma lá" do que "dá cá". A distribuição de cargos e verbas proporcionou uma blindagem ao presidente. Mas não impulsionou a agenda de Guedes.

A turma do mercado olha para Brasília e fica com a impressão de que a estratégia de Bolsonaro mudou. Antes, tudo no governo estava retoricamente condicionado à agenda de reformas de Paulo Guedes. Agora, a prioridade de Bolsonaro é reformar o ministro da Economia, forçando-o a ajustar seus planos à nova prioridade do Planalto, que são os programas sociais. Bolsonaro tenta transformar a pandemia em trampolim eleitoral. Desenvolveu uma insuspeitada vocação social. Mimetiza programas sociais de adversários. Gostaria de repetir mágicas que já se mostraram eleitoralmente rentáveis.

Guedes costuma dizer que, nos governos tucanos e petistas, o Brasil foi aprisionado por um esquerdismo social-democrata. Prometeu libertar o país dessa prisão. No momento, o ministro precisa evitar que o populismo de resultados de Bolsonaro aprisione o seu liberalismo, até aqui mais presente na garganta do que na vitrine.

Guedes precisa zangar-se menos e ouvir mais. Na prática, o que Roberto Campos Neto declarou, com outras palavras, foi que o ministro da Economia precisa convencer Bolsonaro rapidamente que sem bilheteria não há circo. O presidente ergue sua lona eleitoral antes de garantir a sustentabilidade fiscal do espetáculo.