Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Prisão de Silveira é coisa certa em inquérito incerto aberto por Toffoli

Decretada pelo ministro Alexandre de Moraes e avalizada pelas outras dez togas que compõem o plenário do Supremo Tribunal Federal, a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) revelou-se uma providência certa adotada num processo incerto. Trata-se de um inquérito aberto há quase dois anos, em 14 de março de 2019.
A detenção foi certa porque o deputado cometeu crimes variados no vídeo que veiculou no YouTube. Confundiu imunidade parlamentar com insanidade pra lamentar. Lançou mão do direito à liberdade de expressão sem dispor da habilidade de se exprimir. O inquérito de que se serviu o STF para enjaular o brucutu é incerto porque foi inaugurado à margem da lei por Dias Toffoli, então presidente da Corte.
Toffoli alegou que era preciso estancar uma onda de notícias falsas que engolfava o Supremo. Queria identificar os autores de ameaças virtuais aos ministros e seus familiares. Deveria ter requisitado a abertura de inquérito à Procuradoria-Geral da República. Preferiu agir "de ofício", por conta própria. Escorou-se no artigo 43 do regimento interno do Supremo.
O artigo 43 atribui ao presidente do Supremo poderes para defender a Corte contra "infrações à lei penal ocorridas na sede ou dependência do tribunal". Desvirtuando o sentido do texto, Toffoli tratou todo o território do Brasil como se fosse uma versão hipertrofiada da sede do STF. Em condições normais, o relator do processo seria escolhido por sorteio. Toffoli ignorou a regra, confiando a tarefa a Alexandre de Moraes.
Vários ministros torceram o nariz na ocasião. Marco Aurélio manifestou sua estranheza em voz alta: "O que ocorre quando nos vem um contexto que sinaliza prática criminosa? Nós oficiamos o procurador-geral da República, nós acionamos o estado-acusador. Somos estado-julgador e devemos manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de persecução criminal".
Luiz Fux, à época vice-presidente do Supremo, também chiou: "Evidentemente que eu respeito a opinião dele (Toffoli), mas acho que ele vai mandar para a Procuradoria-Geral da República. Não tem como não mandar para a PGR. E não tem como inibir a PGR de trazer novos elementos."
Raquel Dodge, então procuradora-geral, tentou arquivar o inquérito sigiloso de Toffoli. Sustentou que havia vício de origem e de forma. A investigação não poderia ter nascido no Judiciário, sem a participação da Procuradoria. O Supremo acumulou os papeis de vítima, investigador e julgador.
O relator Moraes reagiu assim: "Pode espernear à vontade, pode criticar à vontade. Quem interpreta o regimento do Supremo é o Supremo. O presidente abriu, o regimento autoriza, o regimento foi recepcionado com força de lei e nós vamos prosseguir." Posteriormente, o inquérito de Toffoli foi avalizado pelo plenário da Corte. A maioria como que lavou a decisão ilegal do colega.
A autossuficiência da Suprema Corte está presente no caso do deputado Daniel Silveira. Vítima das agressões e ameaças, Moraes mandou prender o brucutu. Também alvejados, os demais ministros confirmaram a ordem de prisão. Os mesmos ministros terão de julgar o inquérito sobre notícias falsas e ataques à instituição, do qual o deputado preso é um dos protagonistas.
Com o tempo, a investigação secreta aberta por Toffoli e relatada por Moraes foi ganhando a aparência de um inquérito multiuso. Começou com o pé esquerdo, censurando uma notícia da revista Crusoé. Trazia Toffoli pendurado de ponta-cabeça no título. O barulho provocado pelo disparate forçou Moraes a recuar, liberando a reportagem. Hoje, o alvo principal é a caravana de militantes e políticos bolsonaristas associados ao chamado gabinete do ódio, sediado no Planalto.
O contrário da aversão primária que personagens como Daniel Silveira nutrem pelo Supremo é o entusiasmo ingênuo que aceita todas as presunções da Suprema Corte a seu próprio respeito. Isso inclui concordar com a tese segundo a qual as togas, por supremas, têm uma missão na Terra de inspiração divina e, portanto, inquestionável.