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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Após 57 anos, o Brasil precisa de novos golpes

Equipe de transição/Rafael Carvalho
Imagem: Equipe de transição/Rafael Carvalho

Colunista do UOL

31/03/2021 05h10

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Estalando de novo na chefia do Ministério da Defesa, o general Braga Netto divulgou mensagem sobre o golpe militar de 1964, que faz aniversário de 57 anos nesta quarta-feira. Chamou o golpe de "movimento". Anotou que os "acontecimentos" que levaram os militares a virar a mesa precisam ser "compreendidos e celebrados". Bobagem. O brasileiro precisa mesmo é de novos golpes.

O vírus dá a impressão de que todos estão indo a pique. Com 3.668 mortes por covid em 24 horas, o Brasil tornou-se o pior país do mundo no combate à pandemia. O total de vítimas roça a casa dos 320 mil. É preciso um golpe de coragem para que Bolsonaro comece a presidir a crise sanitária, parando de se comportar como um conto do vigário em que seus 58 milhões de eleitores caíram.

Nas palavras subscritas por Braga Netto, o golpe militar foi necessário porque "as Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o país, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos."

Um golpe de vista alternativo ajudaria o general a explicar o que faz ao lado de um capitão que fabrica crises do nada. Um personagem que divide o país, negligencia reformas econômicas, desorganiza as Forças Armadas, distribui armas e ameaça a estabilidade da democracia com insinuações de que pode acionar a qualquer momento o "meu Exército".

Durante a ditadura, a oposição e a imprensa foram condenadas por um bom tempo a usar meias palavras. Ou palavra nenhuma. Criou-se um tipo novo de leitor: o leitor de entrelinha. Certos assuntos eram proibidos: tortura, desaparecimentos, corrupção... Súbito, a poesia de Camões chegou às primeiras páginas.

Esse tempo tinha passado. Mas as meias palavras —ou palavra nenhuma— voltaram. Só que agora quem fala pela metade ou silencia é a família Bolsonaro. Todos os zeros à esquerda do clã presidencial estão sob investigação. Quando não calam expressam-se por meias verdades, privilegiando a metade que é mentirosa.

O presidente ameaçou "encher de porrada" a boca de um repórter que ousou perguntar de onde vieram os R$ 89 mil que o operador Fabrício Queiroz e a mulher dele depositaram na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.

Passou da hora de o Judiciário dar um golpe de misericórdia nos recursos protelatórios da primeira-família, permitindo que os investigadores apalpem os dados que conduzem à verdade.

Braga Netto atrasou o relógio para pintar o cenário que a ditadura costumava usar como justificativa para o arbítrio: "A Guerra Fria envolveu a América Latina, trazendo ao Brasil um cenário de inseguranças com grave instabilidade política, social e econômica. Havia ameaça real à paz e à democracia."

Num cenário marcado pela ruína econômica, desemprego, fome crescente, retorno do centrão aos cofres públicos e escassez de vacinas... Num cenário assim só um golpe de sorte pode garantir aos brasileiros todos os golpes de que precisa —o golpe de coragem, o golpe de vista alternativo, o golpe de misericórdia...