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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Comitê anticovid mostra que a união faz a farsa

Colunista do UOL

31/03/2021 15h42

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Uma semana depois de sua criação, reuniu-se o comitê anticovid. Tomado pelas declarações dos participantes, o encontro foi um diálogo entre os cegos e o surdo. Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, chefes do Senado e da Câmara, fingiram enxergar uma conversão de Bolsonaro à racionalidade. E o presidente da República, com os ouvidos bloqueados para a lógica, condenou novamente o isolamento social. Pregou a volta à "normalidade", potencializando a impressão de que o Brasil continua sob a presidência da anormalidade.

Autoconvertido numa espécie de coordenador do comitê, Pacheco realçou a relevância da "uniformização do discurso" em torno de algumas obviedades: "...É necessário se vacinar, usar máscara, higienizar as mãos, distanciamento social, de modo a prevenirmos o aumento da doença no nosso país." Foi ecoado por Lira e Marcelo Queiroga, o quarto ministro da Saúde da pandemia.

Falando aos jornalistas noutro evento, Bolsonaro praticou o acesso da uniformização da retórica. Praticou seu esporte predileto: tiro ao alvo. O alvo é conhecido: governadores e prefeitos. O capitão acomodou todas as formas de isolamento sob o guarda-chuva do lockdown, uma modalidade draconiana de confinamento que o Brasil ainda não experimentou. E disparou:

"O apelo que a gente faz aqui é que esta política de lockdown seja revista. Isso cabe, na ponta da linha, aos governadores e aos prefeitos. Porque só assim podemos voltar à normalidade. O Brasil tem que voltar a trabalhar."

Os comentários repetem uma cantilena que Bolsonaro entoa desde que o coronavírus fez a sua primeira vítima oficial no Brasil, em 17 de março de 2020.

Para o presidente, pandemia é um outro nome para "histeria". O isolamento social, por "inútil", só serve para arruinar a economia. Por isso, os brasileiros deveriam submeter-se à infecção "como homens", pois ela é inevitável.

Bolsonaro graduou-se em ciência lendo a bula da cloroquina. Demora a notar que a doença do ignorante é ignorar a sua própria ignorância. Dá de ombros para singelas evidências. Por exemplo: sem vacina, o vírus foge ao controle.

Crescem as filas hospitalares. Quem consegue chegar à UTI corre o risco de ser entubado a seco, pois faltam sedativos. Quanto menor for a taxa de adesão ao isolamento, maior tende a ser a pilha de cadáveres.

O problema poderia ser menor se Bolsonaro não tivesse retardado a aquisição de vacinas. Sobre sua inépcia, o presidente não tem nada a dizer. Simula uma amnésia.

Bolsonaro confunde memória fraca com consciência limpa. E terceiriza a encrenca para governadores e prefeitos. No limite, transfere para os brasileiros a prerrogativa de escolher o seu próprio caminho para o inferno, optando por viver com medo ou morrer com valentia.

Pacheco repetiu um bordão que destoa da atmosfera confusa que se seguiu à reunião do comitê anticovid. Declarou que o Brasil precisa escolher um entre dois caminhos: a união o caos. Considerando-se que a união entre os Poderes faz a farsa, o país continuará no caminho do caos. Uma trilha que leva aos 400 mil cadáveres.