Topo

Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Maestria de Luana Araújo na CPI realça a mediocridade da gestão Bolsonaro

Colunista do UOL

02/06/2021 19h48

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Em depoimento à CPI da Covid, a médica Luana Araújo revelou-se a mais competente gestora da crise sanitária que o governo Bolsonaro jamais terá. Desnomeada apenas dez dias depois de ter sido selecionada pelo ministro Marcelo Queiroga (Saúde), a doutora virou protagonista de um raríssimo caso de desnomeação por excesso de talento. E Queiroga ficou muito parecido com os antecessores Henrique Mandetta e Nelson Teich, que buscaram a porta de saída por falta de autonomia para gerir a Saúde.

Expressando-se em linguajar técnico, didático e cortês, Luana respondeu às perguntas dos senadores com maestria. Sobre o debate a respeito de um hipotético tratamento precoce da covid com medicamentos ineficazes como a cloroquina, a doutora disse: "Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente. Ainda estamos discutindo uma coisa sem cabimento. É como se estivéssemos discutindo de qual borda da terra plana vamos pular."

Esquivou-se das provocações com classe e firmeza. "Autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para experimentação", afirmou, por exemplo, sobre a liberdade dos médicos de receitar medicamentos ineficazes. "A autonomia precisa ser defendida, sim. Mas com base em alguns pilares. No pilar da plausibilidade teórica do uso daquela medicação, do volume de conhecimento científico acumulado até aquele momento, no pilar da ética e no pilar da responsabilização. Quando junta tudo isso, você tem direito a uma autonomia e precisa fazer o melhor para seu paciente."

Os dois depoimentos ouvidos pela CPI da Covid nesta semana iluminaram o paradoxo que leva o governo Bolsonaro a gastar mais tempo e energia ao falar dos problemas sanitários do que ao enfrentá-los. Os senadores inquiriram duas médicas. Na terça, a oncologista Nise Yamaguchi. Nesta quarta, Luana. Entusiasta da cloroquina, Nise fez a cabeça de Bolsonaro sem ocupar cargo no governo. Avessa à cloroquina, Luana teve a cabeça levada à bandeja antes de esquentar a poltrona de secretária de Enfrentamento à Covid.

As teorias de Nise Yamaguchi coincidem com a prática antissanitária do presidente. Estão assentadas num tripé: cloroquina, imunidade de rebanho e ceticismo em relação às vacinas. Parte desse receituário produziu a queda de dois ministros da Saúde: o ortopedista Henrique Mandetta e o oncologista Nelson Teich. O cardiologista Queiroga foi nomeado por Bolsonaro no pressuposto de que a Saúde voltaria a ser administrada segundo critérios técnicos, depois da ocupação militar promovida pelo general Eduardo Pazuello.

A doutora Luana foi escolhida na suposição de que Queiroga teria autonomia para compor uma equipe técnica. Convocada à CPI para explicar por que deixou o governo tão prematuramente, Luana declarou que desconhece o motivo. Dias atrás, Queiroga deu uma pista do que sucedeu. O ministro declarou que a ex-quase-futura-secretária é uma "pessoa qualificada" para exercer "qualquer função pública", mas foi desnomeada porque além da "validação técnica" era necessário obter uma "validação política" do nome dela. "Vivemos num regime presidencialista", disse o ministro.

Antes de ser selecionada, Luana havia chamado de "neocurandeirismo" a prescrição de cloroquina para tratar da Covid. Escreveu nas redes sociais que a insistência num remédio que a ciência já carimbou de ineficaz coloca o Brasil "na vanguarda da estupidez mundial."

No depoimento desta quarta, Luana foi instada a comentar uma sequência de declarações esdrúxulas de Bolsonaro sobre a pandemia. As frases negacionistas do presidente foram exibidas num telão. A doutora teve o discernimento de reprovar o inaceitável sem descer do púlpito técnico para o chão escorregadio da política.

"Não é possível ouvir uma declaração ou um conjunto de declarações de quem quer que seja, não estou personalizando na figura do presidente, sem sofrer um impacto quase que emocional. A mim, como médica infectologista, epidemiologista, educadora em saúde, isso me suscita que eu preciso trabalhar mais, que eu preciso informar melhor as pessoas. A mim me parece que falta informação de qualidade. Quando obtém informação de qualidade, não é mais esse tipo de comportamento que a gente espera que aconteça. Então, a mim me dói."

Marcelo Queiroga será reinquirido pela CPI na próxima terça-feira. Terá de explicar por que desnomeou Luana Araújo. Suspeita-se que o quarto ministro da Saúde da gestão Bolsonaro não dispõe da autonomia que imaginou ter recebido do presidente. É uma pena. A essa altura, esperava-se que já estivesse entendido que um governante que se rodeia de assessores mais competentes do que ele é mais competente do que eles.