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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Personagem multiuso, Wassef fornece aos Bolsonaro advocacia miliciana

Mateus Bonomi/Agif - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo
Imagem: Mateus Bonomi/Agif - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

10/07/2021 13h53

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Sob Bolsonaro, o absurdo adquiriu uma doce, persuasiva, admirável naturalidade. O brasileiro se espanta cada vez menos com tudo o que se diz e o que se faz. É como se o país tivesse suprimido dos seus hábitos o ponto de exclamação. Mas Chega uma hora em que é preciso fazer a concessão de uma surpresa.

Ao final de uma semana em que Bolsonaro insinuou o desejo de cancelar as eleições de 2022, o advogado da família real, Frederick Wassef, ameaçou de morte a jornalista Juliana Dal Piva: "Lá na China, você desapareceria e não iriam nem encontrar o seu corpo", escreveu o doutor em mensagem endereçada à repórter.

Deve-se este penúltimo despautério de Wassef a uma série de reportagens em que Juliana Dal Piva deu visibilidade a algo que o defensor dos Bolsonaro é pago para esconder: "A vida secreta de Jair." Incapaz de elevar a estatura dos que lhe pagam honorários, Wassef dedica-se a reduzir o pé-direito de sua advocacia, aproximando-a do crime.

Quem leu e ouviu o material veiculado por Juliana soube, agora com nitidez inaudita, que a rachadinha (podem chamar de corrupção) não beneficiou apenas o primogênito Flávio Bolsonaro. Prática disseminada entre os políticos de baixa extração, a apropriação de nacos dos salários de assessores tornou-se um hábito dos membros da família Bolsonaro. Coisa que passa de pai para filhos.

Em vez de defender sua clientela, o doutor achou que seria uma boa puxar o saco de Bolsonaro aderindo ao esporte predileto do capitão: o ataque a jornalistas. Utilizou a munição usual de praxe. Chamou Juliana de comunista. "Por que não se muda para a grande China...?"

A certa altura, Wassef parece aconselhar a repórter a fazer como ele, fingindo-se de boba pelo bem de Bolsonaro, um presidente que "tenta livrar o Brasil da maldita esquerda." O doutor dá a entender que a rachadinha seria um troco, se comparada aos "bilhões de dólares" desviados pela esquerda.

É sempre a mesma cantilena. Os bolsonaristas costumam menosprezar os detritos quando eles aparecem sob o tapete da primeira-família. Esperava-se que Wassef tivesse algo mais a dizer em defesa do mito e de sua prole além de sobrepor a imagem do "troco" à dos "bilhões".

De troco em troco, chega-se à doçura da loja de chocolates com aparência de lavanderia. Ou aos imóveis pagos com malas de dinheiro. Ou à mansão brasiliense de R$ 5,9 milhões registrada num cartório distante, em papelório mambembe.

A inanição retórica de Wassef ganha ossatura antropológica quando vista sob a ótica de um clássico: o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira. Conta Vieira que, navegando em poderosa armada, estava Alexandre Magno a conquistar a Índia quando trouxeram à sua presença um pirata dado a roubar os pescadores.

Alexandre repreendeu o pirata. E ele replicou: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?"

Citando Lucius Annaeus Seneca, um austero filósofo e dramaturgo de origem espanhola, que serviu em Roma como conselheiro de Nero, Vieira arrematou seu raciocínio: "Se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, todos —rei, ladrão e pirata— merecem o mesmo nome."

Wassef adora refletores. Tornou-se arroz de festa nos eventos oficiais de Brasília. É mais do que advogado dos Bolsonaro. Virou provedor de serviços gerais. Quando procurava por Fabrício Queiroz, o operador das rachadinhas da família real, a polícia o encontrou escondido numa casa do doutor. De advogado, Wassef foi promovido a "Anjo", como era chamado por Márcia Aguiar, a mulher de Queiroz.

Tanta proximidade com o ilícito acaba desenvolvendo certas afinidades. Queiroz abrigara na folha salarial do gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a mãe e a mulher de Adriano da Nóbrega, o miliciano foragido que foi morto pela polícia no interior da Bahia, num sítio do vereador Gilsinho da Dedé, eleito pelo PSL, partido a que pertenceu Bolsonaro.

Em junho de 2018, sentindo-se abandonado, Fabrício Queiroz despejou suas angústias num áudio de WhatsApp. Graças ao jornalismo da "comunista" Juliana, as gravações ganharam as manchetes. Numa delas, Queiroz soou assim: "O Ministério Público está com uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente e não vem ninguém agindo". O "Anjo" estava agindo.

Wassef continua agindo. Inaugurou um novo ramo do Direito: a advocacia miliciana. Especializa-se em ameaças. Logo perceberá que os "comunistas" da imprensa não atiram para matar. E trocam de alvo quando os problemas deixam de existir.

A rachadinha, por exemplo, não seria notícia se o doutor tivesse acomodado num dos pratos da balança da Justiça meio quilo de explicações. Preferiu transformar a honestidade de Flávio Bolsonaro numa virtude sub judice.

O Zero Um é acusado de peculato, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa. Declara-se inocente. Mas Wassef e os outros defensores que seguem a linha de defesa estruturada por ele converteram o primogênito num honesto sui generis, do tipo que prefere enfileirar recursos protelatórios nos tribunais superiores de Brasília a apressar o veredicto que atestaria sua inocência.

O que Wassef tem dificuldade de entender é que a imprensa não é parte da crise. Limita-se a noticiá-la. Quando os encrencados resolvem suas encrencas, os "comunistas" mudam de assunto.