Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Crise entre Poderes adquire proporções inéditas
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Em pouco mais de dois anos e meio de mandato, Bolsonaro demonstrou ao país que sabe criar crises. O envenenamento das relações entre o Planalto e o Judiciário potencializa a convicção de que o presidente não sabe desfazer as crises que fabrica. Pior: age como se acreditasse que a melhor maneira de superar uma crise é criando outra crise, de preferência maior. Bolsonaro conseguiu produzir a mais expressiva crise entre Poderes desde a redemocratização do Brasil, há 36 anos. Com atraso, o Judiciário passou a tratar o chefe do Executivo como uma ameaça à democracia, passível de punição.
Vinte e quatro dias depois de convidar Bolsonaro para uma reunião pacificadora entre os chefes dos três Poderes, o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal, cancelou o encontro. Num discurso em timbre de rompimento, Fux declarou que a pré-condição para o diálogo é "o respeito mútuo entre as instituições e seus integrantes." Disse que as "ofensas" e as "inverdades" de Bolsonaro sobre os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes atingem o Supremo "por inteiro". Criticou a insistência com que Bolsonaro coloca "sob suspeição a higidez do processo eleitoral brasileiro."
Em mais uma evidência de que percorre a conjuntura a procura de encrenca, Bolsonaro reagiu à novidade chamando Fux de desinformado. "Deixar bem claro, ministro Fux: na minha palavra aqui não tem nenhum ataque ao Supremo Tribunal Federal, zero. Se o senhor não tiver alguém para te informar do que eu falo aqui, eu lamento", afirmou o presidente em sua live semanal, transmitida desde a biblioteca do Alvorada, um espaço que se converte em trincheira todas as noites de quinta-feira. Bolsonaro reiterou os conceitos desairosos em relação a Barroso e Moraes. Achincalhou novamente o sistema eleitoral.
Fux parece ter aprendido que o caso de Bolsonaro não é de tranquilizante, como supunha, mas de camisa de força. Chamou para uma conversa, ao meio-dia desta sexta-feira, o procurador-geral da República Augusto Aras. A reunião ocorrerá longe dos refletores, a portas fechadas. Mas não é difícil supor que o desejo do presidente do Supremo é o de conferir até onde Aras planeja deixar que o melado escorra, oferecendo blindagem a um presidente que merece processo. Pela Constituição, cabe ao chefe da Procuradoria converter em denúncia as provas que o Supremo colecionar contra Bolsonaro nos inquéritos que estrelados por ele.
Além de acordar o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral, as ameaças de Bolsonaro à democracia despertaram pedaços representativos da sociedade. Centenas de empresários, banqueiros, economistas e líderes religiosos subscrevem desde quarta-feira um manifesto em defesa do sistema eleitoral brasileiro. A coisa começou em versão impressa e ganha adesões na internet. O texto realça o óbvio: o Brasil enfrenta uma crise sanitária, social e econômica de grandes proporções. Anota que o futuro mais próspero só será possível se for escorado na estabilidade democrática. Algo que depende da realização de eleições e da aceitação de seus resultados por todos os envolvidos.
O manifesto sustenta que a Justiça Eleitoral brasileira é uma das mais modernas e respeitadas do mundo. Declara que todos confiam na Justiça Eleitoral e no atual sistema de votação eletrônico. Nesse contexto, o silêncio dos presidentes das duas Casas do Congresso Nacional soa como omissão. Mas o Congresso produziu duas manifestações que constrangem o senador Rodrigo Pacheco e o deputado Arthur Lira, presidentes do Senado e da Câmara. Numa, a cúpula da CPI que investiga a tragédia da Covid no Senado divulgou nota solidarizando-se com a reação de Fux.
Noutra manifestação, mais eloquente, a comissão especial que analisa na Câmara a mudança no sistema de votação brasileiro rejeitou o parecer que estabelecia o voto impresso. O placar foi constrangedor para Bolsonaro: 23 a 11 contra o parecer do deputado bolsonarista Filipe Barros. A proposta previa que no ato de votação seria obrigatória a emissão de um voto impresso. Mais: a apuração dos votos deveria ocorrer de forma manual na própria sessão eleitoral, com presença de público, antes de seguir para a totalização. Ironicamente, a votação em que os deputados impuseram a derrota a Bolsonaro foi eletrônica.
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