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Josias de Souza

REPORTAGEM

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Caso Covaxin-Precisa injetou corrupção no negacionismo de Jair Bolsonaro

Colunista do UOL

17/09/2021 10h45

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A visita dos rapazes da Polícia Federal a endereços da Precisa Medicamentos é inédita e animadora. O ineditismo está no fato de que a batida policial de busca e apreensão ocorre graças a um pedido da CPI da Covid, que foi parcialmente deferido pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. A providência anima porque revela que a CPI opera com método. Embora já disponha de material para destrinchar o escândalo da vacina indiana Covaxin, a comissão busca na reta final provas adicionais.

A operação visa sobretudo obter o contrato original firmado entre o laboratório indiano Bharat Biotech e a Precisa, sua intermediária na venda frustrada de 20 milhões de doses da Cobvaxin ao Ministério da Saúde. Negócio de R$ 1,6 bilhão. O pedido de busca e apreensão incluía o Ministério da Saúde. Mas a Procuradoria-Geral da República, instada pelo Supremo a se manifestar, opinou contra a incursão policial na secretaria-geral e no Departamento de Logística do ministério. Alegou que poderiam ser apreendidas informações sensíveis e sigilosas, não relacionadas à Covaxin. E Dias Toffoli limitou a ação aos endereços da Precisa.

O caso Covaxin é relevante porque injetou corrupção no desastre sanitário brasileiro, antes restrito aos efeitos do negacionismo de Bolsonaro. A bancada da cloroquina, que defende o governo na CPI, alega que não houve roubo porque o contrato com o laboratório indiano foi cancelado. O argumento soa como desculpa de criança pilhada brincando no barro depois do banho. O Código Penal esclarece que não é preciso consumar a ladroagem para evidenciar a corrupção. O simples oferecimento ou a aceitação da vantagem já caracterizam o crime.

A transação só foi anulada anulado depois que virou escândalo. O governo já havia reservado a cifra de R$ 1,6 bilhão para pagar por 20 milhões de doses da Covaxin, a vacina mais cara da praça. Não fosse pela intervenção de um servidor concursado do Ministério da Saúde, Luís Ricardo Miranda, chefe de Logística de Insumos Estratégicos, o Tesouro teria desembolsado US$ 45 milhões, o equivalente a R$ 222 milhões. Seria um pagamento antecipado. A essa altura, o dinheiro estaria no paraíso fiscal de Singapura sem que o Brasil recebesse uma mísera dose de vacina.

Não foi por falta de aviso que o governo portou-se de forma negligente. Em ofício enviado ao Ministério da Saúde no dia 5 de abril de 2021, a Procuradoria da República no Distrito Federal sugeriu a revogação do contrato de compra da Covaxin. O ministro Marcelo Queiroga respondia pela pasta havia 13 dias. Assumira em 23 de março, após o afastamento do general Eduardo Pazuello. A sugestão foi ignorada.

Apenas em 29 de junho, quando a Covaxin já estava pendurada de ponta-cabeça nas manchetes, Queiroga anunciou a suspensão do contrato. Um mês depois, o o ministro cancelou o contrato em definitivo. O ofício do Ministério Público, ignorado pela gestão de Queiroga três meses antes, fora endereçado pela procuradora da República Luciana Loureiro a Roberto Ferreira Dias, então diretor do Departamento de Logística em Saúde. O documento informou sobre a tramitação na Procuradoria de um "inquérito civil" para apurar suspeita de irregularidades no contrato.

Responsável pelo inquérito, a procuradora requisitara uma posição do ministério sobre o "possível atraso e/ou descumprimento do contrato" celebrado com o laboratório indiano Bharat Biotech. Previa que as vacinas seriam "entregues, escalonadamente, em até 70 dias" após o fechamento do negócio, em 25 de fevereiro de 2021.

A procuradora realçou no texto que a Anvisa negara, em 30 de março de 2021, "o certificado de boas práticas de fabricação ao laboratório" da Índia. Anotou que a negativa da Anvisa "impede a entrega dos lotes" de vacina no prazo. E lembrou que, diante da posição da agência sanitária brasileira, o contrato prevê, em sua "cláusula 15.1.3", a "hipótese de rescisão sem qualquer ônus para o Ministério da Saúde".

Não havia vestígio da chegada de vacinas indianas no Brasil. Mas o site do Ministério da Saúde informava que o contrato intermediado pela Precisa Medicamentos continuava em vigor. A cifra destinada ao pagamento, R$ 1,614 bilhão, estava reservada desde fevereiro.

Foi contra esse pano de fundo que o servidor concursado do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, chefe de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde, levou os lábios ao trombone. Acompanhado do irmão, o deputado bolsonarista Luís Miranda (DEM-DF), servidor estivera no Planalto em 20 de março, três dias antes da posse de Marcelo Queiroga, para denunciar ao presidente a existência de corrupção na compra da Covaxin.

Luis Ricardo contou ao presidente que resistiu à pressão de seus superiores para assinar um documento que liberaria pagamento um pagamento antecipado em nome de Madison Biotech, localizada em Cingapura. Se tivesse cedido, o Tesouro teria desembolsado US$ 45 milhões, o equivalente a R$ 222 milhões, mediante a promessa de entrega de 300 mil doses de vacina.

O contrato não mencionava a Madison, vedava pagamentos antecipados e anotava que o primeiro lote conteria 4 milhões de vacinas. Na versão dos irmãos Miranda, Bolsonaro disse que requisitaria a abertura de investigação da Polícia Federal. Não requisitou. Graças à CPI, o presidente tornou-se investigado em inquérito aberto no Supremo por suspeita de ter cometido crime de prevaricação.

Antes de depor na CPI, o servidor Luis Ricardo prestara esclarecimentos à procuradora Luciana Loureiro. Dissera ter recebido pressões incomuns para acelerar os procedimentos relacionamentos à compra da Covaxin. A procuradora farejou indícios de crime na transação. Encaminhou o caso para o setor da Procuradoria que cuida dos processos criminais. O caso passou a ser investigado civil e criminalmente.

Para a Procuradoria, o contrato estava crivado de irregularidades. A vacina indiana custaria quatro vezes mais, por exemplo, do que a concorrente de Oxford-AstrtaZeneca. Era o único contrato firmado pela pasta da Saúde com uma empresa atravessadora, a Precisa, com histórico de irregularidades nos seus negócios com o setor público. Não dispunha de aval da Anvisa. Os primeiros frascos, que deveriam chegar ao Brasil em maio, não vieram. Não eram negligenciáveis as chances de descumprimento do contrato. Para sorte do contribuinte, o escândalo foi arrancado do escurinho pela CPI.