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Josias de Souza

REPORTAGEM

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Ao retardar sabatina de Mendonça, o Senado converte a anomalia em escândalo

Edu Andrade/Fatopress/Estadão Conteúdo
Imagem: Edu Andrade/Fatopress/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

19/09/2021 06h13

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Empenhado em submeter as instituições às suas conveniências, Bolsonaro transformou o processo de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal numa anomalia. Ao retardar a análise da indicação do ex-advogado-geral da União André Mendonça para a vaga do ministro aposentado Marco Aurélio Mello, o Senado converte a anormalidade em escândalo.

Presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Davi Alcolumbre retarda há dois meses o agendamento da sabatina de Mendonça. Sob refletores, atribuiu-se a protelação a uma suposta reação contra os ataques de Bolsonaro à Suprema Corte e a dois de seus membros: os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. No escurinho, mencionam-se motivos menos nobres.

Aliado do Planalto, Alcolumbre (DEM-AP) distanciou-se do governo depois que perdeu o posto de agenciador informal do rateio de nacos do Orçamento da União que os senadores destinam às suas bases eleitorais. Afastou-se um pouco mais depois de perder para o senador Ciro Nogueira (PP-PI) a disputa pela Casa Civil da Presidência da República.

O distanciamento de Alcolumbre consolidou-se porque, em vez do "terrivelmente evangélico" Mendonça, ele prefere acomodar na poltrona de Marco Aurélio o procurador-geral da República Augusto Aras, nome de estimação dos políticos que são terrivelmente avessos à Lava Jato. Nesse contexto, a embromação não serve senão para potencializar a sensação de que há males que vêm para pior.

O artigo 52 da Constituição enumera as competências privativas do Senado. Entre elas "aprovar previamente, por voto secreto, após arguição pública, a escolha de magistrados" nos casos estabelecidos pelo próprio texto constitucional.

No artigo 101, a Constituição informa que o Supremo Tribunal Federal compõe-se de 11 ministros, escolhidos pelo presidente da República a partir de três critérios: ter "mais de 35 e menos de 65 anos, notável saber jurídico e reputação ilibada."

O parágrafo único do artigo 101 informa, de resto, que a nomeação dos ministros do Supremo ocorrerá "depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal." Significa dizer que o escolhido do presidente, depois de ser referendado pela Comissão de Justiça, precisa obter no plenário os votos de pelo menos 41 dos 81 senadores.

Bolsonaro está sentado na poltrona de presidente porque recebeu os votos de 57,8 milhões de eleitores na sucessão de 2018. André Mendonça tem muitos defeitos. O mais notório é a subserviência ao capitão. Mas tem idade, formação jurídica e moralidade compatíveis com a toga pretendida. Foi escolhido porque a Constituição dá ao presidente da República o poder da escolha.

Formalizada a indicação, os senadores podem aprová-la ou refutá-la. Só não podem manter o indicado no freezer. Incapaz de elevar a própria estatura, Alcolumbe rebaixa o pé-direito do Senado. Submetendo-se aos caprichos do presidente da Comissão de Constituição e Justiça, seus colegas revelam que, no Senado, basta ficar de cócoras para ser considerado um senador de grande altivez.

Na última quarta-feira, Alcolumbre foi submetido a uma situação constrangedora durante sessão da CCJ. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos mais aguerridos membros da oposição, algoz de Bolsonaro na CPI da Covid, ergueu a voz para cobrar o agendamento da sabatina de Mendonça. "Não existe motivo republicano para sua conduta", ralhou, formalizando uma "questão de ordem."

Alcolumbre limitou-se a dizer que analisaria a questão, abstendo-se de marcar a data. Abespinhado, Vieira juntou-se ao colega Jorge Kajuru (Podemos-GO) para protocolar na Suprema Corte um mandado de segurança. A dupla pede ao Supremo que obrigue o Senado a cumprir a obrigação constitucional de sabatinar um candidato a ministro do próprio Supremo.

A novela ultrapassou as fronteiras do paroxismo. O Senado encontra-se agora na inusitada posição de ter de se defender de dois dos seus mais nefastos males, expostos no comportamento de Alcolumbre: o fisiologismo e o corporativismo. O pior é que, ao final do deprimente espetáculo, o nome de Mendonça deve ser referendado pela maioria dos senadores.

São muitos os processos judiciais e as investigações que encostam em Bolsonaro, na sua família e nos seus aliados. Confirmando-se a nomeação, Mendonça integrará a Segunda Turma do Supremo, cemitério dos processos da Lava Jato e outras encrencas criminais. Tramita nesta turma, por exemplo, recurso do primogênito Flávio Bolsonaro para assegurar foro privilegiado no caso da rachadinha.

O que Mendonça fará no Supremo, só ele e dirá. Mas Bolsonaro se encarregou de excluir da conjuntura qualquer vestígio de bom prenúncio. O presidente informou aos devotos do cercadinho que o ex-advogado-geral da União assumiu com ele dois compromissos: 1) Começar com uma oração toda primeira sessão da semana no Supremo Tribunal Federal; 2) "Almoçar uma vez por semana comigo."

Depois de emplacar Kassio Nunes Marques, uma toga escolhida para a poltrona do ex-decano Celso de Mello menos pelo currículo do que pelas doses de "tubaína" que dividiu com o capitão no Alvorada, Bolsonaro deseja dispor de uma toga do tipo "prato feito". Alguém que mastigue na mesa do Alvorada as decisões que tomará nos julgamentos da Suprema Corte.

Quer dizer: o presidente promoveu o pastor presbiteriano Mendonça da condição de "terrivelmente evangélico" para o posto de terrivelmente vassalo. É como se Bolsonaro exigisse do escolhido algo que não está previsto na Constituição: fidelidade.

Na seleção de Nunes Marques, prevaleceu o pressuposto de que o indicado tinha serviços a prestar ao presidente no Supremo. E Bolsonaro não tem do que se queixar. Na escolha de Mendonça, a lealdade do substituto foi previamente aferida por serviços já prestados ao presidente. Mendonça se esmerou para exibir utilidade prévia.

Outros presidentes já vestiram a toga em auxiliares diretos. Mas nenhum foi tão espalhafatoso quanto Bolsonaro. A exemplo de Mendonça, Gilmar Mendes e Dias Toffoli também ocupavam o posto de advogado-geral da União quando foram indicados para o Supremo, respectivamente, por FHC e Lula. Quando foi escolhido por Michel Temer, Alexandre de Moraes era ministro da Justiça.

Os patronos sempre esperam algum tipo de fidelidade a posteriori. Bolsonaro exigiu demonstração prévia de lealdade. Na fase em que mediu forças com Augusto Aras, Mendonça teve uma passagem pelo Ministério da Justiça. Ali, banalizou o uso da falecida Lei de Segurança Nacional em processos contra supostos ofensores da honra presidencial.

Mendonça esgrimiu a ferramenta da ditadura, por exemplo, para um sociólogo e um empresário do Tocantins que se expressaram por meio de dois outdoors. Num, Bolsonaro foi comparado a um "pequi roído". Noutro, foi chamado de mentiroso.

Sob Mendonça, a pasta da Justiça realizou também operação sigilosa para bisbilhotar um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança identificados como integrantes do "movimento antifascismo", todos críticos do governo Bolsonaro. Confeccionou-se um dossiê com nomes e, em alguns casos, fotografias e endereços de redes sociais dos personagens monitorados.

Uma vez aprovada pelo Senado, a indicação de ministro do Supremo não é garantia de fidelidade. Ministros como Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Cezar Peluso, indicados por Lula, foram draconianos com o petismo no julgamento do mensalão. Ajudaram a enviar a cúpula do PT e seus financiadores para o presídio da Papuda. Indicados por Dilma Rosseff, Edson Fachin e Luis Roberto Barroso atuaram como algozes dos encrencados no petrolão.

Diferentemente de Nunes Marques, Mendonça pode até surpreender. Mas terá de fazer enorme esforço. No momento, peregrina pelo Senado como um advogado terrivelmente vassalo de Bolsonaro, um presidente com muitos interesses a defender no Supremo.