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Josias de Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

TSE vê crime, promete punir, mas livra Bolsonaro da culpa do verão passado

Colunista do UOL

28/10/2021 17h06

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Não é que o crime não compensa. Ao se abster de cassar a chapa Bolsonaro-Mourão, o Tribunal Superior Eleitoral esclareceu que, quando compensa, o crime muda de nome. Chama-se "disparo de desinformação em massa" via Whatsapp. A maioria dos ministros concluiu que houve crime. Aprovou-se inclusive uma tese segundo a qual candidato que usar aplicativos digitais para mentir em prejuízo de adversários ou em benefício próprio pode ser cassado. Mas a coisa só vale para as próximas eleições.

"Essa não é uma decisão para o passado, essa é uma decisão para o futuro. E nós aqui estamos procurando demarcar os contornos que vão pautar a democracia brasileira e as eleições do próximo ano", disse o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso. Alexandre de Moraes, que presidirá a Corte Eleitoral durante a campanha de 2022, soou categórico: "Se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado. E as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentar contra as eleições e a democracia no Brasil."

O futuro, como se sabe, a Deus pertence. O que deixa o brasileiro inquieto é esta incômoda sensação de que nenhum investigado graúdo responde pelo passado. A coreografia do TSE reforçou a inquietude. Quem acompanhou o julgamento em que a Corte Eleitoral arquivou por excesso de provas o pedido de cassação da chapa Dilma-Temer viu as imagens do pretérito passando novamente diante dos olhos da nação.

Deve-se à jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, a revelação do jogo sujo da campanha de Bolsonaro. Relator dos pedidos de cassação do presidente e do seu vice, o ministro Luis Felipe Salomão anotou em seu voto que a campanha da dupla teve como foco o uso de ferramentas da internet. Escreveu que a estratégia "assumiu contornos de ilicitude a partir do momento em que se utilizaram essas ferramentas para minar indevidamente candidaturas adversárias, em especial dos segundos colocados." Nas palavras de Salomão, recolheu-se um "conjunto probatório sólido."

O relator reproduziu trecho de documento enviado ao TSE pela companhia controladora do o WhatsApp:

A) "Constatou-se em outubro de 2018 que as empresas Yacows, SMS Market, Quick Mobile Desenvolvimento e Serviços Ltda. e Croc Services Soluções de Informática Ltda. -referidas nas iniciais- ofereciam serviços de disparos em massa de mensagens, em afronta aos seus termos de serviços;"

B) "Os anúncios nos sítios eletrônicos revelam preocupante e espantoso potencial de divulgação de mensagens, a exemplo do funcionamento em três turnos de trabalho e de até 75 mil envios diários (afora as replicações pelos usuários);"

C) "Identificaram-se, durante a campanha, comportamentos concretos indicativos de disparos em massa por duas das empresas, o que ensejou o banimento de contas a elas associadas."

O relator Salomão mencionou também provas reunidas pelo Supremo Tribunal Federal nos inquéritos sobre fake news e milícias digitais. Foram compartilhadas com o TSE. "Jogam nova luz sobre o caso", declarou Salomão. "Inúmeras provas documentais e testemunhais corroboram a assertiva de que, no mínimo desde 2017, pessoas próximas ao hoje presidente da República atuavam de modo permanente, amplo e constante na mobilização digital de eleitores, tendo como modus operandi ataques a adversários políticos, a candidatos e, mais recentemente, às próprias instituições."

Nas palavras de Salomão, a mobilização bolsonarista "vem ocorrendo ao longo dos anos em diversos meios digitais, do que são exemplos mais notórios as redes sociais Instagram e Facebook, a plataforma YouTube e o aplicativo de mensagens WhatsApp." De acordo com o ministro, "os resultados até aqui são catastróficos, em clara tentativa de deteriorar o ambiente de tranquilidade eleitoral e institucional, construído a duras penas desde a reabertura democrática."

Evocando decisão do colega Alexandre de Moraes, relator no Supremo dos inquéritos que vasculham as redes vinculadas a Bolsonaro, Salomão anotou em seu voto que "as provas colhidas e os laudos periciais apresentados nestes autos apontam para a real possibilidade de existência de uma associação criminosa", apelidada de "Gabinete do Ódio." Dedica-se à "disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas pessoas, às autoridades e às instituições, dentre elas o Supremo Tribunal Federal, com flagrante conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática."

Ainda de acordo com o ministro Salomão, "os elementos de prova colhidos nos inquéritos denotam que essa estrutura já se encontrava em funcionamento por ocasião das Eleições de 2018." Ele prosseguiu: "Em outras palavras: já naquela época havia divulgação coordenada e estruturada de notícias falsas e ataques a candidatos e a instituições, no seio dos mais diversos meios digitais, dentre eles o WhatsApp", objeto das ações ajuizadas no TSE pelo PT contra a chapa vitoriosa em 2018.

Iniciado na última terça-feira, o julgamento foi retomado e concluído nesta quinta. Quem acompanhou a leitura do voto do relator Salomão no primeiro dia surpreendeu-se com a guinada que ocorreu do meio para o final. O ministro realçou que, pela lei, a punição por abuso de poder econômico ou uso ilegal de meio de comunicação não requer "a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição". Basta que fique demonstrada "a gravidade das circunstâncias que o caracterizam".

Entretanto, depois de toda a cantilena sobre o "conjunto probatório sólido", Salomão concluiu o seguinte: "A despeito dos disparos em massa, ainda assim os inúmeros elementos de prova produzidos não permitem aferir aspectos quantitativos e qualitativos essenciais para a gravidade: (a) teor das mensagens e, nesse contexto, se continham propaganda negativa ou informações efetivamente inverídicas; (b) de que forma o conteúdo repercutiu perante o eleitorado; (c) alcance do ilícito em termos de mensagens veiculadas; (d) grau de participação dos candidatos nos fatos; (e) se a campanha foi financiada por empresas com essa finalidade."

Salomão votou pelo arquivamento dos pedidos de cassação. Foi acompanhado por todos os outros seis ministros que integram o plenário do TSE. A plateia ficou ainda mais confusa depois da manifestação de Alexandre de Moraes. Apesar da absolvição, o futuro presidente do TSE expressou-se como se quisesse deixar claro que a Justiça eleitoral sabe o que Bolsonaro fez nos verões passados e continua fazendo agora.

Depois de declarar que haverá prisões caso o disparo de mentiras em massa se repita, Moraes afirmou: "Nós já sabemos como são os mecanismos, quais são as provas que devem ser obtidas e como. E não vamos admitir que essas milícias digitais tentem novamente desestabilizar as eleições". Segundo Moraes, "não se pode criar um precedente dizendo que não ocorreu nada. Ocorreu sim, e isso é um fato mais do que notório."

"A Justiça não é tola", prosseguiu Alexandre de Moraes. "Podemos absolver por falta de provas, mas sabemos o que ocorreu e o que vem ocorrendo. As milícias digitais continuam se preparando para disseminar ódio, conspiração, medo, para influenciar eleições e destruir a democracia."

No julgamento da chapa Dilma-Temer, que prevalecera na sucessão de 2014 numa campanha financiada com verbas sujas da Odebrecht, a absolvição ocorreu por fartura de provas. Coube ao então relator do caso, ministro Herman Benjamin, pronunciar a frase que caiu sobre o julgamento como uma lápide: "Eu, como juiz, recuso o papel de coveiro de prova viva. Posso até participar do velório. Mas não carrego o caixão."

Agora, todos os ministros do TSE levaram a mão às alças do caixão. Para salvar a chapa Bolsonaro-Mourão, a Justiça Eleitoral morreu mais um pouco. O cronista Nelson Rodrigues ensinou que "morrer significa, em última análise, um pouco de vocação." Há vivos tão pouco militantes que a plateia fica com vontade de lhes enviar coroas de flores. Ou de atirar em cima deles a última pá de cal.