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Josmar Jozino

REPORTAGEM

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Enteado de Marcola conta como foi sequestrado por policiais corruptos; ouça

Capa especial Marcola  - Toma
Capa especial Marcola Imagem: Toma

Colunista do UOL

04/11/2021 04h00

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Foram 36 horas de tensão e negociações entre policiais civis de Suzano, na Grande São Paulo, e a liderança do PCC (Primeiro Comando da Capital).

Os investigadores corruptos estavam irredutíveis. Exigiam R$ 1 milhão para libertar o enteado do chefe da maior facção criminosa do Brasil.

Depois de muitas conversas, trocas de insultos e xingamentos entre ambas as partes —tudo por telefone - os sequestradores concordaram em reduzir o valor do resgate para R$ 300 mil. O dinheiro foi arrecadado às pressas e entregue em uma delegacia da Polícia Civil.

A vítima do sequestro era Rodrigo Olivatto de Morais, filho da advogada Ana Maria Olivatto. Assassinada em 24 outubro de 2002 na mais sangrenta guerra interna do PCC, ela foi a primeira mulher de Marco Willians Herbas Camacho, 53, o Marcola, apontado como líder da organização.

marcola - Sergio Lima/Folhapress - Sergio Lima/Folhapress
21.ago.2001 - Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado como líder do PCC
Imagem: Sergio Lima/Folhapress

Rodrigo tinha 25 anos em março de 2005 quando foi arrebatado em Guarulhos, na Grande São Paulo, por quatro investigadores e um informante.

Ele foi levado para o cativeiro na rua Benjamin Constant, 1.825, centro de Suzano. Esse é o endereço da delegacia central da cidade.

Procurado pela coluna na última terça-feira (2), Rodrigo, hoje aos 42 anos e trabalhando no comércio de roupas, contou que passou 36 horas de terror em poder dos sequestradores. Ele afirmou que ficou em uma sala no térreo da delegacia, transformada em cativeiro, onde era vigiado e torturado psicologicamente o tempo todo.

Os investigadores corruptos deram um telefone celular para o enteado de Marcola e ordenaram que ele ligasse para o padrasto. O chefe do PCC estava preso na Penitenciária de Araraquara (SP). Rodrigo ligou duas vezes e falou com um preso. O detento recebeu o recado e o tranquilizou.

Ouça o primeiro áudio

Áudio 1

O aparelho havia sido apreendido com a advogada Maria Odete de Moraes Haddad. Ela era defensora de Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e teve as ligações telefônicas interceptadas com autorização judicial. Os policiais também tentaram extorquir a família de Gegê, que seria assassinado anos depois em outra disputa pelo controle da facção.

"Chama meu pai"

Rodrigo afirmou para o preso que havia caído no grampo e estava "em cana" e pediu para falar com Marcola.

"Chama meu pai", insistiu ele.

O prisioneiro que atendeu a ligação avisou que um emissário já estava a caminho da delegacia central de Suzano para resolver a situação.

Ouça o segundo áudio

Áudio 2

Os policiais corruptos alegaram que Rodrigo trabalhava em uma empresa de telefonia na qual a proprietária era investigada por suspeita de habilitar aparelhos de telefone celular para introduzi-los no sistema prisional, a mando do PCC. Esse foi o argumento usado para prender o rapaz.

Os sequestradores gravaram as ligações feitas do cativeiro por Rodrigo para o preso. Depois dos telefonemas, o PCC tratou de arrumar a quantia exigida para pagar o resgate. Na delegacia, os investigadores apresentaram Rodrigo como se ele fosse um "troféu". Um deles disse: "Esse é o enteado do Marcola".

Eles sabiam que a permanência de Rodrigo no cativeiro improvisado na delegacia central significava dinheiro garantido. Os corruptos ameaçaram indiciá-lo por tráfico de drogas, caso suas exigências não fossem cumpridas com urgência.

Os R$ 300 mil foram arrecadados rapidamente, colocados em um saco plástico e levados até um posto de combustíveis na rodovia Ayrton Senna, pista sentido Vale do Paraíba. Uma advogada recebeu o dinheiro e seguiu imediatamente para a delegacia central de Suzano.

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21.jan.2020 - Marcola é levado para helicóptero após ser atendido em hospital em Brasília
Imagem: Sérgio Lima/AFP

Traído pela mulher

Segundo apurações do Ministério Público Estadual, o dinheiro foi entregue para o investigador Augusto Pena. O policial, no entanto, foi traído pela ex-mulher. Regina Célia Lemes de Carvalho delatou o ex-marido e entregou 200 CDs dele com gravações para o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado).

Computadores e telefones celulares de Augusto Pena também foram apreendidos. Nos CDs foram encontradas as gravações de diálogos de extorsões feitas pelos policiais contra familiares de líderes do PCC e também as ligações efetuadas por Rodrigo pedindo ajuda ao padrasto.

Os investigadores Augusto Pena e José Roberto de Araújo foram expulsos da Polícia Civil e condenados a 22 anos por extorsão mediante sequestro e pela fuga de um outro preso. Os outros dois policiais e o informante acusados de envolvimento no crime acabaram absolvidos em primeira instância.

O sequestro de Rodrigo gerou à época uma crise na Secretaria Estadual da Segurança Pública. De acordo com o Ministério Público, a ação dos policiais civis corruptos foi o estopim para os ataques de maio de 2006 liderados pelo PCC contra as forças de segurança em São Paulo.

À coluna, Rodrigo acrescentou que conseguiu superar o trauma causado pelos policiais corruptos. Ele contou que pior do que ter ficado em cativeiro na delegacia foi ter perdido a mãe dele de maneira inesperada e violenta.

Os assassinos de Ana Maria Olivatto também eram integrantes do PCC, mas rivais do padrasto de Rodrigo. Eles foram identificados, caçados e mortos. Depois disso, segundo investigações da Polícia Civil, Marcola assumiu a liderança máxima da facção. Ele nega até hoje.

As disputas por poder e dinheiro dentro da principal organização criminosa do Brasil são narradas na segunda temporada do documentário do "PCC - Primeiro Cartel da Capital", produzido por MOV, a produtora de documentários do UOL, e o núcleo investigativo do UOL.