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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro pode retomar genocídio indígena de onde a ditadura militar parou

Paulino Guajajara, um dos líderes indígenas Guajajara assassinados no Maranhão - Foto: Patrick Raynaud
Paulino Guajajara, um dos líderes indígenas Guajajara assassinados no Maranhão Imagem: Foto: Patrick Raynaud

Colunista do UOL

06/02/2020 16h53

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Jair Bolsonaro tem deixado claro seu incômodo com os direitos das populações indígenas aos seus territórios desde que era apenas deputado federal. Agora, no controle do Poder Executivo, dá início a uma ofensiva contra esses povos que tem tudo para repetir as ações de consequências genocidas levadas a cabo na ditadura militar ao negar-lhes terras, forçar sua aculturação, dificultar acesso a alimentos e permitir a exploração econômica de seus territórios por terceiros, mesmo à revelia.

Após a Fundação Nacional do Índio, sob responsabilidade do Ministério da Justiça, de Sergio Moro, cortar a ajuda a comunidades indígenas que vivem em áreas não-demarcadas, gerando fome no Mato Grosso do Sul, e de um ex-missionário evangélico ser indicado para cuidar da área da Funai que protege populações indígenas isoladas, ou seja, que não possuem contato com o restante da sociedade, o presidente da República deu início ao seu plano de integração econômica forçada. Está posta na mesa uma opção a eles: sejam "seres humanos que nem nós" por bem ou por mal.

Nesta quarta (5), durante o evento que celebrou os 400 dias de seu governo, ele repetiu um de seus mantras: "o índio é um ser humano exatamente igual a nós". Ainda bem que ele explica isso sistematicamente porque ninguém teria percebido.

Bolsonaro enviou, então, ao Congresso Nacional um projeto de lei para liberar a exploração mineral, a construção de hidrelétricas, a agropecuária e o turismo em territórios indígenas.

Desde que tomou posse, o presidente da República "autoriza", através de seus discursos, a garimpeiros, madeireiros, grileiros e pecuaristas a explorarem os recursos dessas áreas ao atacar publicamente a atuação de fiscais e, ao mesmo tempo, afirmar que as riquezas que nelas estão deveriam ser exploradas pelo país.

Agora, transforma suas bravatas - que contribuíram para o aumento do desmatamento na Amazônia e para a violência contra indígenas - em proposta legislativa. Empolgado, o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni definiu o projeto como uma "Lei Áurea". Consequentemente, comparou Bolsonaro à Princesa Isabel e o lobby de empresas por esses recursos naturais ao movimento abolicionista.

"Presidente, com sua assinatura será a libertação. Ou seja, nós teremos a partir de agora a autonomia dos povos indígenas e sua liberdade de escolha", disse. "Será possível minerar, gerar energia, transmitir energia, exploração de petróleo e gás e cultivo das terras indígenas. Ou seja, será a Lei Áurea."

"Lei Áurea" para os empresários e políticos que estarão livres pare explorar esses territórios sem serem incomodados. Por exemplo, as comunidades indígenas não terão poder de veto no processo de consulta a projetos de produção de eletricidade e de extração de petróleo e derivados.

"Comer um capim"

Em maio de 2008, em meio a um bate-boca em audiência pública, na Câmara, para discutir se a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, deveria ser contínua ou não, Jecinaldo Sateré Maué, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, bateu-boca com Bolsonaro e jogou um copo de água na sua direção. "Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens", afirmou o então deputado.

Quatro anos antes, durante outra reunião sobre a Raposo do Sol, ele disse: "O índio, sem falar a nossa língua, fedorento, é o mínimo que posso falar, na maioria das vezes, vem para cá, sem qualquer noção de educação, fazer lobby".

Atende, com esse comportamento, uma de suas bases eleitorais. Tanto que ganhou de forma avassaladora, no segundo turno, no Estado de Roraima (71,55% a 28,45%, votos válidos). Perdeu para Fernando Haddad apenas em três municípios - exatamente aqueles onde fica a Raposa Serra do Sol: Uiramutã (80,42% a 19,58%), Normandia (66,22% a 33,78%) e Pacaraima (51,59% a 48,41%), de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Além de criadores de gado e fazendeiros de soja, madeireiros, garimpeiros e grileiros de terra também se sentiram empoderados pelas palavras do presidente Jair Bolsonaro, que prometeu que não vai demarcar mais terras indígenas ao mesmo tempo que está trabalhando para liberar a exploração econômica desses territórios por não-indígenas. O resultado é que a invasão de aldeias tem sido informalmente tolerada, causando violência e assassinatos.

Por exemplo, após o assassinato de lideranças indígenas da etnia Guajajara, Sergio Moro autorizou o envio da Força Nacional para o Maranhão, em dezembro. Um deles, Paulino Guajajara, morto em novembro, atuava como guardião da floresta.

"Escalada de ódio"

"Esses crimes refletem a escalada de ódio e barbárie incitados pelo governo perverso de Jair Bolsonaro, que segue nos atacando diariamente, negando o nosso direito de existir e incitando a doença histórica do racismo do qual o povo brasileiro ainda padece", disse uma nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), durante a cúpula das Nações Unidas sobre o clima, em Madri, em dezembro. Vale destacar que o presidente chegou a culpar os indígenas pelas queimadas na Amazônia.

"Há gente passando fome aqui nas comunidades Guarani e Kaiowá. Continua criança indo para cama passando fome", me disse Elizeu Pereira Lopes, representante da aldeia Kurusu Ambá no conselho Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, principal organização desse povo). Ele refutou uma declaração de Bolsonaro, de que era mentira que se passa fome no Brasil.

De acordo com antropólogo Spensy Pimentel, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia e especialista na questão indígena no Mato Grosso do Sul, os ataques aos acampamentos na região de Dourados, nos últimos meses, criaram um capítulo à parte na já longa história envolvendo os Guarani e os Kaiowá. Embates que costumavam ser tipicamente rurais, nos últimos 35 anos, agora lembram cada vez mais as cenas de despejos e reintegrações de posse urbanos que volta e meia assolam grupos de sem-teto em megacidades como São Paulo.

"Os seguranças de sítios e fazendas próximas à reserva - chamados de pistoleiros pelos indígenas - teoricamente trabalham com os chamados 'armamentos não-letais'. Na prática, um jovem de 14 anos morreu, após, segundo o movimento indígena, receber 18 tiros dessas armas, outro pode perder a visão em função dos disparos, e uma das bombas de 'efeito moral' abandonadas no local, na semana passada, arrancou os dedos da mão de uma criança", afirma.

Diante das reclamações por causa de invasões de garimpeiros a territórios indígenas ocorridas em seu governo, como aquelas contra a etnia Waiãpi, no Estado do Amapá, e os Yanomami, em Roraima, Bolsonaro tem dito que há um complô internacional para a transformação dessas áreas em países independentes a fim de que suas riquezas possam ser exploradas. "Esse território que está nas mãos dos índios, mais de 90% nem sabem o que que tem lá e mais cedo ou mais tarde vão se transformar em outros países. Há um interesse enorme de outros países de ganhar, de ter para si a soberania da Amazônia", disse.

Os territórios indígenas - que são responsáveis por altas taxas de conservação ambiental - nunca realizaram um plebiscito ou montaram uma campanha de guerra pela independência do Brasil. Pelo contrário, querem é mais atenção do governo federal, querem se sentir efetivamente brasileiros através da conquista de sua cidadania, o que inclui o direito à sua terra. Coisa que o país nunca garantiu totalmente a eles. E, se depender do atual presidente, não vai garantir.