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Leonardo Sakamoto

Homenagem da Águia de Ouro a Paulo Freire foi ato de resistência à burrice

Águia de Ouro desfila no Anhembi - Ricardo Matsukawa/UOL
Águia de Ouro desfila no Anhembi Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Colunista do UOL

25/02/2020 21h31

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Quando historiadores forem estudar o nosso tempo no futuro (e espero que, no futuro, historiadores não tenham sido trocados por gestores de grupos de WhatsApp), irão descrever ações populares de resistência à burrice e à ignorância como fundamentais para impedir que a sociedade mergulhasse de cabeça nas trevas.

Isso foi visto pelo desfile da Estação Primeira de Mangueira e da São Clemente, no Rio de Janeiro, mas também no da Águia de Ouro, em São Paulo, que homenageou Paulo Freire, suscitando debates sobre o educador em pleno Carnaval. A escola de samba do glorioso bairro da Pompeia ganhou seu primeiro título do Grupo Especial nesta terça (25).

Com o enredo "O Poder do Saber - Se saber é poder, quem sabe faz a hora, não espera acontecer", a Águia de Ouro trouxe a história do conhecimento para o Anhembi. Estampado em um livro à frente de um dos carros alegóricos, "Não se pode falar de educação sem amor. Viva Paulo Freire!". O suficiente para lembrar a importância do pernambucano, visto internacionalmente como um dos principais educadores do mundo, mas eleito pelo atual governo como um de seus piores inimigos.

Aliás, duas coisas no carro alegórico devem assustar gente no entorno de Jair Bolsonaro. Primeiro, o poder emancipador de uma educação lapidada com amor. E, claro, livros.

Em dezembro, o presidente da República chamou Paulo Freire de "energúmeno". Segundo o dicionário Houaiss, isso significa um ignorante, boçal, imbecil - o que faz da cena um poço amargo de ironia.

Cada vez que xinga Freire, o presidente provoca espasmos de prazer em sua militância que, como ele, não compreende a filosofia de ensino do educador. Como papagaios, repetem exaustivamente as críticas de militares da ditadura e de influenciadores da extrema direita sobre o pernambucano - esses sim compreendem o poder da concepção de Paulo Freire para que as pessoas formem-se nas letras e sejam cidadãs de fato. E, por isso, desejam enterrá-lo.

Como já expliquei aqui antes, a ideia do educador é tão simples quanto genial. Consiste - grosso modo - a usar a realidade dos alunos para ensina-los. Para aprender a palavra "tijolo", discute-se o que ela representa para todos - quem sabe fazer um tijolo, quem o compra, quem o vende, quem lucra com ele. Para entender a palavra "trabalho", pode-se incentivar o aluno a conhecer a CLT, seus direitos e deveres. Isso encara a educação não apenas como um processo técnico de passar dados, mas como um caminho para que todos possam exercer sua cidadania plena.

Por isso, é visto como subversivo por aqueles que preferem um povo que apenas diga amém.

Em Angicos, no Rio Grande do Norte, que contava com altas taxas de pobreza e de analfabetismo, um grupo de professores liderado por Paulo Freire ensinou 300 adultos a ler e a escrever e fomentou a percepção sobre os direitos trabalhistas e o direito ao voto em apenas 40 horas. Era o ano de 1963. Com o golpe no ano seguinte, os militares não deixaram que a ideia fosse implementada no plano nacional de alfabetização.

Ele é nosso acadêmico mais citado e nosso professor mais traduzido para outras línguas. Sua concepção de ensino é respeitada por professores em todo o mundo. Por aqui, apesar de criticado, ajudou a reduzir o analfabetismo após a redemocratização.

Como sempre digo, o Brasil conta com uma formação precária dos docentes e com alunos que saem do Ensino Médio analfabetos funcionais. Assiste a roubo, ausência e baixa qualidade da merenda escolar. Paga baixos salários aos professores e não fornece estrutura suficiente em todas as escolas, como esgoto e água potável.

Mas o governo resolveu travar uma batalha contra uma pessoa que dedicou sua vida a melhorar a educação e, nesse meio tempo, deixou o Ministério da Educação vazio. O Enem bichado que o diga. Os dois prepostos lá colocados serviram apenas desperdiçar tempo do país, substituindo a busca pela melhoria da educação básica e superior por debates que reescrevem o passado.

Como lembrou Águia de Ouro, conhecimento pode ser usado para a destruição ou a evolução da humanidade. A burrice, como manifestação da negação do conhecimento, avança enquanto governantes acham possível construir uma sociedade melhor e mais justa jogando na lata do lixo os instrumentos usados para refletirmos sobre nossos erros e acertos. Como uma educação emancipadora.

De longe, o futuro nos pede para que não deixemos isso acontecer.

Que as luzes do Carnaval sigam iluminando os demais dias do ano.