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Leonardo Sakamoto

Com reformulações, ministro Salles desnuda cadáver da política para o clima

Chuvas causam alagamentos na cidade de São Paulo  - Reprodução/TV Globo
Chuvas causam alagamentos na cidade de São Paulo Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do UOL

29/02/2020 13h39

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Conforme divulgado pela imprensa nesta semana, o ministro Ricardo Salles mandou exonerar cargos no Ministério do Meio Ambiente relacionados à sua assessoria internacional e ao que, nominalmente, ainda sobrava da estrutura daquele ministério dedicada à questão urgente da mudança do clima.

As alterações, que — no estilo característico do ministro, que usa genericamente o jargão sobre "eficiência" para ofuscar o que são medidas de desmonte — foram vendidas como uma ação para dar "perfil executivo" à área de clima do ministério.

Segundo depreende-se do que foi relatado, as alterações não deverão ter enorme impacto. Troca-se um diplomata por outro, e muda-se o nome de uma assessoria internacional para incluir questões de clima. As mudanças, porém, desnudam os imensos descaso, ignorância, incompreensão demonstrados pelo ministro Salles — e pelo governo Bolsonaro como um todo — em relação à mudança do clima.

A morte quase absoluta da política para mudança do clima do Brasil pode ser talvez um dos mais graves defeitos deste governo, e dos mais prejudiciais ao país no longo prazo. No entanto, tem sido muito pouco reportada e valorizada pela imprensa. Esta, afinal, já tem tido muito o que reportar em face dos disparates e provocações pronunciados quase diariamente pelo presidente e seus ministros. Isso em meio a outros e graves descalabros e demonstrações de incompetência, por exemplo na educação, na cultura, na política externa, nas políticas sociais, e nas relações com o Congresso, para não falar dos casos de corrupção, conflitos de interesse, envolvimento de políticos com milicianos, e tentativas de acobertamento.

Tudo isso, porém, não deveria encobrir o tamanho da irresponsabilidade capitaneada pelo ministro Ricardo Salles com relação às atuais e futuras gerações. Como já foi discutido nesta coluna, a mudança do clima é uma emergência global, e provavelmente o mais importante desafio que se coloca à humanidade e à civilização. Para explicar o contexto dessa mudança e o que ela significa, conversei com fontes nos Ministérios das Relações Exteriores, Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia e com entidades da sociedade civil.

Planeta já dá o troco

As temperaturas médias do planeta já se elevaram em quase 1º C em relação aos níveis históricos, e as emissões de carbono fóssil seguem em níveis várias vezes mais altos que o aceitável para reverter a tendência de alta. O consenso dos cientistas é que boa parte do estrago já foi feito, e mudanças profundas no clima, que já estão ocorrendo, irão piorar no futuro próximo, afetando a agricultura, os rios, o nível dos mares, provocando enchentes, secas, extinções em massa de insetos, peixes, aves, répteis e mamíferos, além de fome, deslocamentos populacionais, perda de florestas.

Tudo isso irá acontecer, em algum nível, se o aumento de temperatura for contido a menos de 2º C. No entanto, caso o padrão de emissões de carbono não se altere, pode ser ainda pior, muito pior, a ponto de colocar em risco a civilização humana como a conhecemos. Em um cenário de elevação de 3º C, ou, caso realmente insistamos no erro, de 4º, 5º, ou mesmo 6º C, os efeitos serão drásticos e imprevisíveis. A produção agrícola pode ficar comprometida para sempre, a natureza do planeta vai se alterar drasticamente, e, em um cenário pessimista, mas possível, vislumbrado pelos cientistas, a elevação da temperatura pode iniciar círculos viciosos de emissões que transformariam a Terra em algo parecido com o que é hoje o planeta Vênus — um lugar de atmosfera venenosa, dominado pelo efeito estufa, e inviável para a vida, ao menos para a vida humana.

O impacto final preciso desses efeitos no planeta é incerto. O que é certo e comprovado pela ciência sem margem de erro é que as emissões de carbono provocadas pela atividade humana, sobretudo pelo uso de petróleo, gás, carvão mineral, e pelo desmatamento, estão mesmo elevando rapidamente a temperatura do planeta.

Bombeiro tenta proteger casas de incêndio florestal na Austrália em 31 de dezembro de 2019 - SAEED KHAN / AFP - SAEED KHAN / AFP
Bombeiro tenta proteger casas de incêndio florestal na Austrália em 31 de dezembro de 2019
Imagem: SAEED KHAN / AFP

Desmatamento

Como é melhor não pagar para ver, praticamente todos os países do mundo assinaram, ainda em 1992 (no Brasil, que à época liderava esse debate), a Convenção Quadro sobre Mudança do Clima. Dentro dessa Convenção, o Acordo de Paris foi aprovado, em 2015, e aberto a assinaturas, em 2016, com o compromisso de fazer tudo o que for preciso para atingir o objetivo de limitar o aquecimento global a menos 2º C, e, se possível, a no máximo 1,5º C.

Pelo Acordo de Paris, cada país deverá cumprir sua parte para reduzir as emissões globais. O que é exatamente essa parte é determinado por cada um, individualmente, e por isso o compromisso é chamado de "Contribuição Nacionalmente Determinada", ou NDCs (sigla em inglês, pela qual é mais conhecida) . As NDC variam na forma e nível de ambição, mas todas prometem reduzir o nível de emissões de poluentes do clima em relação ao usual. O Acordo de Paris registra e fiscaliza o cumprimento das NDC de cada país. E prevê, periodicamente, um processo de revisão pelo qual os países deverão "melhorar" suas contribuições, reduzindo ainda mais as metas de emissão de gases de efeito estufa.

A revisão das metas é imprescindível, pois, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, as atuais NDCs submetidas pelos países, somadas, ainda não seriam suficientes para conter o aumento de temperatura a 2º C, mesmo se forem integralmente cumpridas.

Pois bem, voltando, agora, ao Brasil. Em 2016, o país formalizou sua NDC no acordo de Paris prometendo reduzir suas emissões totais em 37% em relação aos níveis de 2005 até 2025, e em 43% até 2030. Quando essa NDC foi planejada e submetida, ainda havia política de clima no país, mesmo que imperfeita. Foram feitos cálculos e estimativas, reunindo diversos ministérios, agências, e cientistas brasileiros, sobre o quanto seria possível alcançar, de modo a ter uma meta ambiciosa, mas ainda assim factível e compatível com as propostas de desenvolvimento do país.

No entanto, a meta não se alcança no automático. Boa parte dela será cumprida por meio da redução do desmatamento, dando margem para que não precisemos cortar tanto nosso uso de petróleo e gás, ainda essenciais ao crescimento econômico. Mas o cumprimento da meta - lembremos, só faltam cinco anos para a primeira etapa - requer políticas públicas coordenadas e eficazes em florestas, práticas agrícolas, energias renováveis, transportes e outras.

Ao mesmo tempo, o governo e sociedade como um todo precisam continuar um diálogo intenso sobre como fazer a revisão da nossa NDC, de forma a elevar sua ambição. E sobre como transformar essa obrigação em uma enorme oportunidade, gerando renda e empregos novos e de qualidade nas áreas de gestão ambiental, aproveitamento sustentável da biodiversidade, turismo ecológico, tecnologias limpas, energias renováveis, biocombustíveis, agricultura inteligente e outros.

Mas não estamos conseguindo nem controlar o desmatamento da Amazônia, como os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais mostraram.

Desmatamento Amazônia - 22.ago.2019 - Ueslei Marcelino/Reuters - 22.ago.2019 - Ueslei Marcelino/Reuters
Proteção ao meio ambiente ainda é considerada a questão mais sensível do atual governo perante comunidade internacional, dizem brasilianistas
Imagem: 22.ago.2019 - Ueslei Marcelino/Reuters

Brasil está devendo

Isso tudo, como o leitor inteligente já compreendeu, precisa ser uma ação transversal conduzida pelo governo inteiro, quando não por toda a sociedade. Não tem como ser conduzido por uma mera assessoria internacional, que precisa cuidar de assuntos muito mais fundamentais para o país e a humanidade, como por exemplo as passagens aéreas e o hotel do ministro Salles em suas viagens pelo mundo, com direito a visitas a churrascarias.

Salles acredita, ou finge acreditar, que "mudança do clima" é só um tema de relações internacionais. Ir em reuniões, buscar enrolar estrangeiros com sua conversa mole em seminários lá fora, comprar briga com franceses, tentar reduzir danos à imagem brasileira que suas próprias políticas provocaram, causar celeuma nas reuniões da convenção de clima. Para isso, porém, já existe o Itamaraty de Ernesto Araújo.

A primeira rodada de elevações das NDC está prevista para acontecer no final deste ano, na conferência internacional do clima, em Glasgow, Escócia. Vamos ou não vamos apresentar elevação da nossa meta? Se sim, ou se não, por que razão? Que estratégias internas temos para garantir que seja cumprida? Haveria algum trabalho ou debate interno no Brasil sobre isso? Segundo fontes do próprio governo e de especialistas em mudança do clima ouvidas para esta apuração: zero.

Não dá para dizer que o Brasil não tenha se preparado no passado. A Política Nacional sobre Mudança do Clima, aprovada por lei em 2009, prevê um esquema de governança que, ao menos no papel, seria o correto para enfrentar de forma transversal esse imenso desafio. A lei criou um Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), com 16 ministérios, coordenado pela Casa Civil da Presidência da República, para definir as ações necessárias. Abaixo do Comitê, um Grupo Executivo, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, e composto por sete ministérios, para tocar e implementar os diversos planos setoriais determinados pelo comitê. E um Fórum Brasileiro de Mudanças do Clima (FBMC), com integrantes da sociedade civil, academia, e setor privado, para dialogar com esses comitês, trazendo propostas, opiniões, assessoramento.

02.dez.2019 - O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, participa de mesa redonda na COP-25 - Susana Vera/Reuters - Susana Vera/Reuters
02.dez.2019 - O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, participa de mesa redonda na COP-25
Imagem: Susana Vera/Reuters

Política zumbi

Se você leu até aqui, creio que não precisará que eu lhe conte que esse tema, desde o início do atual governo, é um cadáver morto e frio, ainda que não tenha sido enterrado, pois a lei continua vigente e um decreto do final de 2019, coincidente com a última conferência do clima, reinstaurou formalmente o CIM.

No entanto, logo que assumiu o governo, Salles extinguiu a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas, que na prática operava a máquina prevista na lei, e, ao enxugar em muito o seu efetivo, a colocou dentro da Secretaria de Relações Internacionais, sob o comando de Roberto Castelo Branco. O colunista Diogo Schelp, do UOL, informou que ele será substituído por outro diplomata de carreira e outras duas pessoas que cuidavam do tema. Um dos demitidos, inclusive, era a memória do Brasil na área, por estar atuando nessa função há vários governos, adaptando-se às políticas de cada um, mas sendo cauteloso.

Por sua vez, o Fórum Brasileiro de Mudanças do Clima, que conta com a presença de representantes do governo federal e da sociedade civil, estava trabalhando, no ano passado, com um fórum de governadores para tocar uma agenda de clima independentemente das ações federais e fazer as coisas andarem. Em maio de 2019, o coordenador-executivo do FBMC, o jornalista e escritor Alfredo Sirkis, foi retirado do cargo, que não era remunerado. Desde então, o fórum reduziu e muito sua atividade e relevância.

"O significado dessas mudanças é que o Ministério do Meio Ambiente não se meterá mais no tema das mudanças climáticas. Ficará com o Itamaraty e a questão do inventário de emissão de gases de efeito estufa continuará com o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações", explica Sirkis, que, hoje é diretor-executivo do Centro Brasil no Clima (CBC). O instituto segue trabalhando com os governadores no tema.

De acordo com ele, o país alinhou-se a um grupo de governos que resistem à agenda climática, como Estados Unidos, Arábia Saudita e a Austrália - que passou por um incêndio de grandes proporções, evento extremo que vai ser mais comum com as mudanças climáticas.

"O fato é que hoje não existe política federal de clima, não existe um plano de implementação da nossa NDC e aumento de ambição não passa nem remotamente pela cabeça do governo", afirma Claudio Angelo, dos coordenadores do Observatório do Clima.

"A participação do Brasil no Acordo de Paris hoje se resume a uma assinatura num pedaço de papel, e nossos parceiros comerciais e concorrentes sabem bem disso, por mais melífluo que seja o discurso do ministro."

Em suma: entocada na assessoria internacional de um ministério fraco, em franco processo de dilapidação, e chefiado por um ministro condenado, em primeira instância, por improbidade administrativa por atos que cometeu no cargo de secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, a agenda de clima do Brasil, que deveria estar entre as prioridades do país, qualquer país, está morta, seu cadáver nu e exposto às moscas. Mais uma das vítimas da política anti-ambiental, anti-Brasil, anti-humanidade, anti-futuro, deste governo.

Se isso não for revertido logo, quem pagará o preço seremos nós, nossos filhos, e nossos netos.