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Leonardo Sakamoto

Com cidades sob lama, políticos passeiam de helicóptero e culpam vítimas

Ciclista enfrenta chuva  na Avenida Senador Pinheiro Machado com rua Nove de Julho no bairro da Marapé, em Santos - Fabrício Costa/Estadão Conteúdo
Ciclista enfrenta chuva na Avenida Senador Pinheiro Machado com rua Nove de Julho no bairro da Marapé, em Santos Imagem: Fabrício Costa/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

03/03/2020 10h38Atualizada em 04/03/2020 02h49

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O rastro de mortes e destruição deixado pelas fortes chuvas que atingiram os estados do Sudeste, no início deste ano, reforça como nossos gestores públicos são despreparados para lidar tanto com catástrofes. E como o direito à moradia dos mais pobres é sistematicamente desrespeitado por eles.

São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e o Espírito Santo estão vivendo, neste momento, apenas um aperitivo do que será nosso cotidiano de eventos extremos frequentes que virão como consequência das mudanças climáticas. Mas ao invés de propostas de adaptação à nova realidade e planos para ampliação rápida de habitação popular, o que se vê são desculpas e pirotecnia.

A contagem de corpos das chuvas aumentou consideravelmente, na madrugada desta terça (3), quando, ao menos, 16 pessoas perderam a vida por conta dos deslizamentos de terra nos municípios de Guarujá, São Vicente e Santos (SP).

Diante da tragédia, parte dos administradores públicos sobrevoa de helicóptero as áreas afetadas - o que rende ótimas imagens para os telejornais e as redes sociais e passa a sensação de solidariedade, mas tem pouco efeito prático.

Jair Bolsonaro fez isso, no dia 30 de janeiro, em Minas Gerais. Melhor seria se tivesse ficado no Palácio do Planalto e ordenado a seus ministros que interrompessem o velório de corpo presente da política brasileira contra mudanças climáticas. Contudo, essa agenda segue sofrendo desdém, redução de pessoal e de recursos, além de enfrentar um chanceler negacionista e um presidente que vê no desmatamento o símbolo do progresso.

Governantes tentam provar, com ações de visibilidade, que estão preocupados e trabalhando, quando a própria tragédia mostra a falta de mecanismos de alerta e de remoção de emergência de populações em áreas de risco. E, principalmente, expõe a falta de políticas públicas de moradia, de contenção de encostas, de drenagem urbana, de aumento da permeabilidade do solo.

Outra parte deles prefere esconder sua corresponsabilidade jogando a conta nas costas da população ou no imponderável.

O caso mais bizarro até agora foi o do prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Neste domingo (1), o bispo licenciado da Igreja Universal disse que o impacto das chuvas teria sido menor se as margens dos rios não fossem ocupadas por pessoas que "gostam de morar ali perto porque gastam menos tubo para colocar cocô e xixi e ficar livre daquilo". Gostam de morar ali... É uma declaração multiuso: esconde a incompetência, passa pano na especulação imobiliária e ainda culpa a vítima.

Já o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, frente a mortes ocorridas durante as chuvas, afirmou, no dia 25 de janeiro, que "essa água vem do céu, não vem de incompetência administrativa".

A situação é responsabilidade de todas as gestões, inclusive a dele, que não conseguiram preparar a cidade para enfrentar esse tipo de impacto e, simultaneamente, jogaram os pobres para áreas de risco. Mas ele tirou o corpo fora.

"Não sou herói de assumir o que não é [culpa minha]. Em desastres, não há responsabilidades", afirmou Kalil. Não precisa ser herói, basta ser racional. Chamamos equivocamente de "desastres naturais" as mortes causadas por tempestades, terremotos, furações, inundações, entre outros eventos. Mas não há nada de natural nisso, pois já há tecnologia e protocolos para prever, reduzir e evitar perdas humanas. Há falta de ação. Vale registrar que Minas Gerais, governada por Romeu Zema, registrou mais de 70 mortos neste ciclo de chuvas.

O prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa, disse que a chuva foi "desproporcional". Sim, se consideradas as estatísticas passadas. O clima mudou. Os quadros pluviométricos de 50 anos não representam mais a realidade de eventos climáticos extremos.

Gestores racionais deveriam adaptar as cidades, preparando-as para o pior. Mas o que vemos é que eles estão prontos para soltar notas de solidariedade, gravar vídeos para redes sociais e culpar terceiros, o sobrenatural ou o acaso. Precisam fazer mais do que engajar a Defesa Civil, o Corpo de Bombeiros e a Polícia Militar para correr atrás do prejuízo sempre que chove.

O momento seria propício para o presidente da República, por exemplo, convocar governadores e prefeitos e iniciar um processo de adaptação às irreversíveis mudanças no clima, ao mesmo tempo que implementa uma ação nacional de prevenção a catástrofes. Liberando, por exemplo, recursos para construção imediata de moradias populares para quem vive em áreas de risco.

O problema é que isso significaria, em primeiro lugar, travar um diálogo político com outros atores, incluindo opositores - o que está além de sua capacidade. E fazer com que a União invista em obras públicas, o que ajudaria a gerar emprego - o que está longe de seus planos. E também reconhecer que o pensamento medieval de seu governo estava equivocado ao defender um modelo de desenvolvimento predatório. Mas, aqui, começamos a entrar no campo da ficção científica, sobre um Brasil de uma realidade paralela, governado por pessoas racionais.

Post atualizado para inclusão do novo número de vítimas fatais.